Os Cantos de Maldoror (Português Europeu)
Sexto Canto
Estrofe 1
Doravante, os fios do romance moverão os três personagens acima mencionados: assim lhes será comunicada uma potência menos abstracta. A vitalidade espalhar-se-á magnificamente no torrente do seu aparelho circulatório, e vereis como vós próprios ficareis espantados ao encontrar, onde a princípio tínheis acreditado ver apenas entidades vagas pertencentes ao domínio da especulação pura, por um lado, o organismo corporal com as suas ramificações de nervos e membranas mucosas, por outro, o princípio espiritual que preside às funções fisiológicas da carne. São seres dotados de uma vida enérgica que, de braços cruzados e o peito em suspenso, posarão prosaicamente (mas estou certo de que o efeito será muito poético) diante do vosso rosto, colocados a apenas alguns passos de vós, de modo que os raios solares, batendo primeiro nas telhas dos telhados e nas tampas das chaminés, virão depois reflectir-se visivelmente nos seus cabelos terrenos e materiais.
Mas não serão mais anátemas, possuidores da especialidade de provocar o riso; personalidades fictícias que bem teriam feito em permanecer no cérebro do autor; ou pesadelos colocados demasiado acima da existência ordinária. Notai que, por isso mesmo, a minha poesia será ainda mais bela. Tocareis com as vossas mãos ramos ascendentes da aorta e cápsulas suprarrenais; e depois sentimentos! Os cinco primeiros cânticos não foram inúteis; foram o frontispício da minha obra, o fundamento da construção, a explicação prévia da minha poética futura: e eu devia a mim mesmo, antes de fechar a minha mala e pôr-me a caminho das terras da imaginação, avisar os sinceros amantes da literatura, por um esboço rápido de uma generalização clara e precisa, do objectivo que resolvera perseguir.
Em consequência, a minha opinião é que, agora, a parte sintética da minha obra está completa e suficientemente parafraseada. Foi por ela que soubestes que me propus atacar o homem e Aquele que o criou. Por agora e para mais tarde, não precisais saber mais! Considerações novas parecem-me supérfluas, pois apenas repetiriam, sob outra forma, mais ampla, é verdade, mas idêntica, o enunciado da tese cujo primeiro desenvolvimento verá o fim deste dia.
Resulta das observações precedentes que a minha intenção é empreender, doravante, a parte analítica; isso é tão verdade que há apenas alguns minutos expressei o ardente desejo de que estivésseis presos nas glândulas sudoríferas da minha pele, para verificar a lealdade do que afirmo, com conhecimento de causa. Sei que é preciso sustentar com um grande número de provas a argumentação contida no meu teorema; pois bem, essas provas existem, e sabeis que não ataco ninguém sem motivos sérios!
Rio-me a bandeiras despregadas quando penso que me reprovais por espalhar amargas acusações contra a humanidade, da qual sou um dos membros (só esta observação me daria razão!) e contra a Providência: não retratarei as minhas palavras; mas, relatando o que terei visto, não me será difícil, sem outra ambição que a verdade, justificá-las. Hoje, vou fabricar um pequeno romance de trinta páginas; esta medida permanecerá, daqui em diante, mais ou menos estacionária.
Esperando ver em breve, um dia ou outro, a consagração das minhas teorias aceite por esta ou aquela forma literária, creio ter finalmente encontrado, após alguns ensaios, a minha fórmula definitiva. É a melhor: porque é o romance! Esta prefácio híbrido foi exposto de uma maneira que talvez não pareça suficientemente natural, no sentido em que surpreende, por assim dizer, o leitor, que não vê muito bem aonde se quer levá-lo inicialmente; mas este sentimento de notável estupefacção, do qual geralmente se deve tentar subtrair aqueles que passam o tempo a ler livros ou folhetos, fiz todos os meus esforços para o produzir. Com efeito, era-me impossível fazer menos, apesar da minha boa vontade: só mais tarde, quando alguns romances tiverem aparecido, compreendereis melhor o prefácio do renegado, de figura fuliginosa.
Estrofe 2
Antes de entrar em matéria, acho estúpido que seja necessário (penso que nem todos partilharão da minha opinião, se estiver enganado) colocar ao meu lado um tinteiro aberto e alguns folhetos de papel não mastigado. Desta maneira, ser-me-á possível começar, com amor, por este sexto cântico, a série de poemas instrutivos que me tarda produzir. Episódios dramáticos de uma utilidade implacável!
O nosso herói apercebeu-se de que, ao frequentar as cavernas e tomando como refúgio os lugares inacessíveis, transgredia as regras da lógica e cometia um círculo vicioso. Pois, se por um lado favorecia assim a sua repugnância pelos homens, pelo compensação da solidão e do afastamento, e circunscrevia passivamente o seu horizonte limitado entre arbustos raquíticos, silvas e trepadeiras, por outro, a sua actividade não encontrava mais nenhum alimento para nutrir o minotauro dos seus instintos perversos. Em consequência, resolveu aproximar-se das aglomerações humanas, persuadido de que, entre tantas vítimas já preparadas, as suas diversas paixões encontrariam amplamente com que se satisfazer.
Sabia que a polícia, esse escudo da civilização, o procurava com persistência há muitos anos, e que um verdadeiro exército de agentes e espiões estava continuamente no seu encalço. Sem, contudo, conseguir encontrá-lo. Tamanha era a sua habilidade espantosa que desconcertava, com um supremo requinte, as artimanhas mais indiscutíveis do ponto de vista do seu êxito, e a ordem da mais sábia meditação. Possuía uma faculdade especial para assumir formas irreconhecíveis aos olhos treinados. Disfarces superiores, se falo como artista! Trajes de um efeito realmente medíocre, quando penso na moral.
Por este ponto, ele quase tocava o génio. Não haveis notado a gracilidade de um belo grilo, de movimentos ágeis, nos esgotos de Paris? Só havia aquele: era Maldoror! Magnetizando as capitais florescentes com um fluido pernicioso, ele leva-as a um estado letárgico em que são incapazes de se vigiar como deveriam. Estado tanto mais perigoso por não ser suspeitado. Hoje está em Madrid; amanhã estará em São Petersburgo; ontem encontrava-se em Pequim.
Mas afirmar exactamente o lugar actual que os feitos deste poético Rocambole enchem de terror é uma tarefa acima das forças possíveis da minha espessa raciocinação. Este bandido está, talvez, a setecentas léguas deste país; talvez, a poucos passos de vós. Não é fácil fazer perecer inteiramente os homens, e as leis estão aí; mas, com paciência, pode-se exterminar, uma por uma, as formigas humanitárias.
Ora, desde os dias do meu nascimento, quando vivi com os primeiros antepassados da nossa raça, ainda inexperiente na tensão das minhas ciladas; desde os tempos recuados, situados para além da história, quando, em subtis metamorfoses, devastava, em diversas épocas, as regiões do globo com conquistas e carnificinas, e espalhava a guerra civil entre os cidadãos, não terei eu já esmagado sob os meus calcanhares, membro por membro ou colectivamente, gerações inteiras, cujo número incalculável não seria difícil conceber? O passado radioso fez brilhantes promessas ao futuro: ele cumprir-as-á.
Para o penteado das minhas frases, empregarei forçosamente o método natural, retrocedendo até aos selvagens, para que me dêem lições. Cavalheiros simples e majestosos, a sua boca graciosa enobrece tudo o que brota dos seus lábios tatuados. Acabo de provar que nada há de risível neste planeta. Planeta cómico, mas soberbo. Apoderando-me de um estilo que alguns acharão ingénuo (quando é tão profundo), fá-lo-ei servir para interpretar ideias que, infelizmente, talvez não pareçam grandiosas!
Por isso mesmo, despojando-me das maneiras leves e cépticas da conversa ordinária e, suficientemente prudente para não colocar… já não sei o que pretendia dizer, pois não me recordo do início da frase. Mas sabei que a poesia se encontra em todo o lado onde não está o sorriso, estupidamente trocista, do homem, de cara de pato.
Vou primeiro assoar-me, porque preciso; e depois, poderosamente ajudado pela minha mão, retomarei a pena que os meus dedos tinham largado. Como pôde a ponte do Carrousel manter a constância da sua neutralidade, ao ouvir os gritos dilacerantes que pareciam sair do saco!
Estrofe 3
Romance 1 — I
As lojas da Rua Vivienne exibem as suas riquezas aos olhos maravilhados. Iluminados por numerosos bicos de gás, os estojos de mogno e os relógios de ouro espalham através das vitrinas feixes de luz deslumbrante. Soaram oito horas no relógio da Bolsa: não é tarde! Mal o último golpe do martelo se fez ouvir, a rua, cujo nome foi mencionado, começa a tremer e sacode os seus alicerces desde a Praça Real até ao Boulevard Montmartre.
Os transeuntes apressam o passo e retiram-se pensativos para as suas casas. Uma mulher desmaia e cai no asfalto. Ninguém a levanta: todos têm pressa de se afastar deste lugar. Os postigos fecham-se com ímpeto, e os habitantes enfiam-se nas suas cobertas. Dir-se-ia que a peste asiática revelou a sua presença. Assim, enquanto a maior parte da cidade se prepara para nadar nas alegrias das festas nocturnas, a Rua Vivienne vê-se subitamente gelada por uma espécie de petrificação. Como um coração que deixa de amar, viu a sua vida extinguir-se.
Mas, em breve, a notícia do fenómeno espalha-se pelas outras camadas da população, e um silêncio lúgubre paira sobre a augusta capital. Onde estão os bicos de gás? O que aconteceu às vendedoras de amor? Nada… solidão e escuridão! Uma coruja, voando numa direcção rectilínea, com uma pata quebrada, passa sobre a Madeleine e toma o seu rumo em direcção à barreira do Trono, exclamando:
«Um infortúnio está a preparar-se.»
Ora, neste lugar que a minha pena (esse verdadeiro amigo que me serve de comparsa) acaba de tornar misterioso, se olhardes do lado por onde a Rua Colbert se junta à Rua Vivienne, vereis, no ângulo formado pelo cruzamento destas duas vias, uma figura mostrar a sua silhueta e dirigir a sua marcha ligeira para os boulevards. Mas, se nos aproximarmos mais, de modo a não atrair sobre nós a atenção deste passante, percebemos, com um agradável espanto, que ele é jovem! De longe, ter-se-ia efectivamente tomado por um homem maduro. A soma dos dias já não conta quando se trata de apreciar a capacidade intelectual de um rosto sério.
Eu sei ler a idade nas linhas fisionómicas da testa: ele tem dezasseis anos e quatro meses! É belo como a retracção das garras das aves de rapina; ou ainda, como a incerteza dos movimentos musculares nas feridas das partes moles da região cervical posterior; ou antes, como essa armadilha para ratos perpétua, sempre rearmada pelo animal capturado, que pode apanhar roedores indefinidamente sozinha e funcionar mesmo escondida sob a palha; e sobretudo, como o encontro fortuito, numa mesa de dissecação, de uma máquina de costura e de um guarda-chuva!
Mervyn, esse filho da loura Inglaterra, acaba de ter uma aula de esgrima com o seu professor e, envolto no seu tartan escocês, regressa à casa dos pais. São oito e meia, e ele espera chegar a casa às nove: da parte dele, é uma grande presunção fingir ter certeza de conhecer o futuro. Não poderá algum obstáculo imprevisto embaraçá-lo no caminho? E seria essa circunstância tão pouco frequente que ele devesse considerá-la uma excepção? Por que não considera antes, como um facto anormal, a possibilidade que teve até agora de se sentir sem inquietação e, por assim dizer, feliz?
Com que direito, efectivamente, pretenderia ele chegar incólume à sua morada, quando alguém o espreita e o segue por trás como a sua futura presa? (Seria conhecer bem pouco a sua profissão de escritor sensacionalista não colocar, pelo menos, as interrogações restritivas após as quais chega imediatamente a frase que estou prestes a terminar.) Reconhecestes o herói imaginário que, há muito tempo, despedaça com a pressão da sua individualidade a minha infeliz inteligência!
Ora Maldoror aproxima-se de Mervyn, para gravar na sua memória os traços deste adolescente; ora, com o corpo lançado para trás, recua sobre si mesmo como o bumerangue da Austrália na segunda fase do seu trajecto, ou antes, como uma máquina infernal. Indeciso sobre o que deve fazer. Mas a sua consciência não experimenta nenhum sintoma de uma emoção, por mais embrionária que seja, como erradamente suporíeis. Vi-o afastar-se por um instante numa direcção oposta; estaria ele oprimido pelo remorso? Mas voltou atrás com um novo afinco.
Mervyn não sabe por que as suas artérias temporais batem com força, e apressa o passo, obcecado por um medo cuja causa ele e vós procurais em vão. Deve-se-lhe dar crédito pelo esforço em desvendar o enigma. Por que não se vira para trás? Compreenderia tudo. Será que alguém pensa nos meios mais simples de pôr fim a um estado alarmante?
Quando um vagabundo das barreiras atravessa um subúrbio da periferia, com uma tigela de vinho branco na garganta e a blusa em farrapos, se, no canto de um marco, avista um velho gato musculoso, contemporâneo das revoluções a que os nossos pais assistiram, contemplando melancolicamente os raios da lua que caem sobre a planície adormecida, avança tortuosamente numa linha curva e faz um sinal a um cão sarnento, que se precipita. O nobre animal da raça felina espera o seu adversário com coragem e disputa caro a sua vida. Amanhã, algum trapeiro comprará uma pele electrizável. Por que não fugiu ele, então? Era tão fácil.
Mas, no caso que agora nos ocupa, Mervyn complica ainda mais o perigo com a sua própria ignorância. Tem algumas luzes, excessivamente raras, é verdade, cujo vaguear não me deterei a demonstrar; no entanto, é-lhe impossível adivinhar a realidade. Não é profeta, não digo o contrário, e não se reconhece a faculdade de o ser.
Chegado à grande artéria, vira à direita e atravessa o Boulevard Poissonnière e o Boulevard Bonne-Nouvelle. Neste ponto do seu caminho, avança pela Rua do Faubourg Saint-Denis, deixa para trás o terminal da estrada de ferro de Estrasburgo e detém-se diante de um portal elevado, antes de alcançar a sobreposição perpendicular da Rua Lafayette. Já que me aconselhais a terminar aqui a primeira estrofe, quero bem, por esta vez, obedecer ao vosso desejo.
Sabeis que, quando penso no anel de ferro escondido sob a pedra pela mão de um maníaco, um arrepio invencível me percorre os cabelos?
Estrofe 4
Romance 2 — II
Ele puxa o botão de cobre, e o portal do hotel moderno gira sobre os seus gonzos. Percorre o pátio, salpicado de areia fina, e sobe os oito degraus do alpendre. As duas estátuas, colocadas à direita e à esquerda como guardiãs da villa aristocrática, não lhe barram o caminho. Aquele que renegou tudo, pai, mãe, Providência, amor, ideal, para só pensar em si mesmo, teve o cuidado de seguir os passos que o precediam.
Viu-o entrar num espaçoso salão do rés-do-chão, com lambris de cornalina. O filho da família atira-se sobre um sofá, e a emoção impede-o de falar. A mãe, com um vestido longo e arrastado, apressa-se à sua volta e envolve-o nos seus braços. Os irmãos, mais novos que ele, agrupam-se em torno do móvel, carregado com um fardo; não conhecem a vida o suficiente para formar uma ideia clara da cena que se desenrola. Por fim, o pai ergue a sua bengala e lança sobre os presentes um olhar cheio de autoridade.
Apoiando o pulso nos braços da poltrona, afasta-se do seu assento habitual e avança, com inquietação, embora enfraquecido pelos anos, em direcção ao corpo imóvel do seu primogénito. Fala numa língua estrangeira, e todos o escutam num recolhimento respeitoso:
«Quem deixou o rapaz neste estado? O Tamisa enevoado ainda arrastará uma quantidade notável de lodo antes que as minhas forças se esgotem por completo. Não parecem existir leis protectoras nesta terra inóspita. Ele sentiria a força do meu braço, se eu conhecesse o culpado. Embora me tenha retirado, afastado dos combates marítimos, a minha espada de comodoro, pendurada na parede, ainda não enferrujou. Além disso, é fácil afiá-la de novo. Mervyn, tranquiliza-te, darei ordens aos meus criados para encontrar o rasto daquele que, doravante, procurarei, para o fazer perecer com as minhas próprias mãos. Mulher, afasta-te daí e vai-te encolher num canto; os teus olhos enternecem-me, e farias melhor em fechar o canal das tuas glândulas lacrimais. Meu filho, suplico-te, desperta os teus sentidos e reconhece a tua família; é o teu pai que te fala…»
A mãe mantém-se à parte e, para obedecer às ordens do seu senhor, pegou num livro entre as mãos e esforça-se por permanecer tranquila perante o perigo que corre aquele que o seu ventre gerou.
«… Crianças, ide brincar no parque e tomai cuidado, ao admirar a natação dos cisnes, para não cairdes na peça de água…»
Os irmãos, de mãos pendentes, permanecem mudos; todos, com o barrete encimado por uma pena arrancada da asa do noitibó da Carolina, com as calças de veludo até aos joelhos e as meias de seda vermelha, dão-se as mãos e retiram-se do salão, tendo o cuidado de pressionar o soalho de ébano apenas com a ponta dos pés. Tenho a certeza de que não se divertirão e que passearão com gravidade pelas alamedas de plátanos. A sua inteligência é precoce. Tanto melhor para eles.
«… Cuidados inúteis, embalo-te nos meus braços, e és insensível às minhas súplicas. Quererias erguer a cabeça? Beijarei os teus joelhos, se for preciso. Mas não… ela recai inerte.»
— «Meu doce senhor, se permitires à tua escrava, vou buscar no meu quarto um frasco cheio de essência de terebintina, de que costumo usar quando a enxaqueca invade as minhas têmporas, após regressar do teatro, ou quando a leitura de uma narrativa comovente, registada nos anais britânicos da história cavaleiresca dos nossos antepassados, lança o meu pensamento sonhador nas turfeiras do torpor.»
— «Mulher, não te dei a palavra, e não tinhas o direito de a tomar. Desde a nossa união legítima, nenhum nuvem se interpôs entre nós. Estou satisfeito contigo, nunca tive reproches a fazer-te: e reciprocamente. Vai buscar no teu quarto um frasco cheio de essência de terebintina. Sei que há um nas gavetas da tua cómoda, e não me vais ensinar isso. Despacha-te a subir os degraus da escada em espiral e volta até mim com um rosto contente.»
Mas a sensível londrina mal chegou aos primeiros degraus (não corre tão depressa como uma pessoa das classes inferiores) quando já uma das suas damas de companhia desce do primeiro andar, com as faces ruborizadas de suor, trazendo o frasco que, talvez, contenha o licor da vida nas suas paredes de cristal. A dama inclina-se com graça ao apresentar a sua oferta, e a mãe, com o seu andar régio, avançou até às franjas que bordejam o sofá, único objecto que ocupa a sua ternura.
O comodoro, com um gesto altivo mas benevolente, aceita o frasco das mãos da esposa. Um lenço da Índia é embebido nele, e envolve-se a cabeça de Mervyn com os meandros orbiculares da seda. Ele respira sais; move um braço. A circulação reanima-se, e ouvem-se os gritos alegres de um cacatua das Filipinas, empoleirado no peitoril da janela.
«Quem está aí?... Não me detenham… Onde estou? É uma tumba que sustenta os meus membros pesados? As tábuas parecem-me macias… O medalhão com o retrato da minha mãe ainda está preso ao meu pescoço?... Para trás, malfeitor de cabeça desgrenhada. Ele não conseguiu atingir-me, e deixei entre os seus dedos um pedaço do meu gibão. Soltem as correntes dos buldogues, pois, esta noite, um ladrão reconhecível pode entrar cá em casa com arrombamento, enquanto estaremos mergulhados no sono. Meu pai e minha mãe, reconheço-vos e agradeço-vos os vossos cuidados. Chamai os meus irmãos mais novos. Foi para eles que comprei pralinas, e quero abraçá-los.»
Com estas palavras, cai num estado letárgico profundo. O médico, chamado às pressas, esfrega as mãos e exclama:
«A crise passou. Tudo está bem. Amanhã o vosso filho acordará bem-disposto. Ide todos para as vossas camas respectivas, ordeno-o, para que eu fique sozinho junto do doente, até ao aparecimento da aurora e do canto do rouxinol.»
Maldoror, escondido atrás da porta, não perdeu uma palavra. Agora conhece o carácter dos habitantes do hotel e agirá em conformidade. Sabe onde mora Mervyn e não deseja saber mais. Anotou num caderno o nome da rua e o número do prédio. Isso é o principal. Está seguro de não os esquecer. Avança como uma hiena, sem ser visto, e contorna os lados do pátio. Escala a grade com agilidade, enredando-se por um instante nas pontas de ferro; com um salto, está na calçada. Afasta-se a passos de lobo.
«Ele tomou-me por um malfeitor», exclama, «ele é um idiota. Gostaria de encontrar um homem isento da acusação que o doente lançou contra mim. Não lhe tirei um pedaço do gibão, como ele disse. Simples alucinação hipnagógica causada pelo medo. A minha intenção não era hoje apoderar-me dele, pois tenho outros planos futuros para este adolescente tímido.»
Dirigi-vos para o lado onde se encontra o lago dos cisnes; e, mais tarde, dir-vos-ei por que há entre o grupo um completamente negro, cujo corpo, sustentando uma bigorna encimada pelo cadáver em putrefacção de um caranguejo-real, inspira, com razão, desconfiança aos seus outros companheiros aquáticos.
Estrofe 5
Romance 3 — III
Mervyn está no seu quarto; recebeu uma missiva. Quem lhe escreve uma carta? O seu transtorno impediu-o de agradecer ao agente postal. O envelope tem bordas negras, e as palavras estão traçadas numa caligrafia apressada. Irá ele levar esta carta ao seu pai? E se o remetente lho proibir expressamente?
Cheio de angústia, abre a janela para respirar os aromas da atmosfera; os raios do sol reflectem as suas irradiações prismáticas nos espelhos de Veneza e nas cortinas de damasco. Atira a missiva para o lado, entre os livros de lombada dourada e os álbuns de capa nacarada, espalhados sobre o couro repuxado que cobre a superfície da sua secretária de estudante. Abre o piano e faz correr os seus dedos esguios sobre as teclas de marfim. As cordas de latão não ressoaram. Este aviso indirecto incita-o a pegar novamente no papel velino; mas este recuou, como se tivesse sido ofendido pela hesitação do destinatário.
Preso nesta armadilha, a curiosidade de Mervyn cresce, e ele abre o pedaço de trapo preparado. Até esse momento, só tinha visto a sua própria caligrafia.
«Jovem, interesso-me por ti; quero fazer a tua felicidade. Tomar-te-ei como companheiro, e realizaremos longas peregrinações pelas ilhas da Oceânia. Mervyn, sabes que te amo, e não preciso de to provar. Conceder-me-ás a tua amizade, disso estou persuadido. Quando me conheceres melhor, não te arrependerás da confiança que me tiveres testemunhado. Preservar-te-ei dos perigos a que a tua inexperiência te exporia. Serei para ti um irmão, e não te faltarão bons conselhos. Para explicações mais longas, encontra-te, depois de amanhã de manhã, às cinco horas, na ponte do Carrousel. Se eu não tiver chegado, espera-me; mas espero estar lá à hora exacta. Tu, faz o mesmo. Um inglês não abandonará facilmente a oportunidade de ver claro nos seus assuntos. Jovem, saúdo-te, e até breve. Não mostres esta carta a ninguém.»
— «Três estrelas em vez de uma assinatura», exclama Mervyn, «e uma mancha de sangue no fundo da página!»
Lágrimas abundantes escorrem sobre as frases curiosas que os seus olhos devoraram, e que abrem ao seu espírito o campo ilimitado de horizontes incertos e novos. Parece-lhe (só desde a leitura que acaba de terminar) que o seu pai é um pouco severo e a sua mãe demasiado majestosa. Tem razões que não chegaram ao meu conhecimento e que, por conseguinte, não poderia transmitir-vos, para insinuar que os seus irmãos também não lhe convêm. Esconde a carta no peito.
Os seus professores notaram que nesse dia ele não se parecia consigo mesmo; os seus olhos escureceram desmedidamente, e o véu da reflexão excessiva desceu sobre a região peri-orbitária. Cada professor corou, temendo não estar à altura intelectual do seu aluno, e, no entanto, este, pela primeira vez, negligenciou os seus deveres e não trabalhou.
À noite, a família reuniu-se na sala de jantar, decorada com retratos antigos. Mervyn admira os pratos carregados de carnes suculentas e os frutos perfumados, mas não come; os riachos policromados dos vinhos do Reno e o rubi espumante do champanhe incrustam-se nas taças estreitas e altas de pedra da Boémia, deixando até a sua vista indiferente. Apoia o cotovelo na mesa e permanece absorto nos seus pensamentos como um sonâmbulo.
O comodoro, de rosto curtido pela espuma do mar, inclina-se ao ouvido da esposa:
«O mais velho mudou de carácter desde o dia da crise; já era demasiado dado a ideias absurdas; hoje sonha ainda mais que o costume. Mas eu não era assim na idade dele. Faz de conta que não notas nada. É aqui que um remédio eficaz, material ou moral, encontraria facilmente o seu lugar. Mervyn, tu que gostas de ler livros de viagens e história natural, vou ler-te um relato que não te desagradará. Que me escutem com atenção; cada um tirará proveito, eu o primeiro. E vós, crianças, aprendei, pela atenção que souberdes dar às minhas palavras, a aperfeiçoar o desenho do vosso estilo e a perceber as menores intenções de um autor.»
Como se este ninho de adoráveis fedelhos pudesse compreender o que era retórica! Ele diz, e, com um gesto da mão, um dos irmãos dirige-se à biblioteca paterna e regressa com um volume debaixo do braço. Enquanto isso, a mesa e a prataria são retiradas, e o pai pega no livro. A este nome electrizante de viagens, Mervyn ergueu a cabeça e esforçou-se por pôr fim às suas meditações descabidas. O livro é aberto a meio, e a voz metálica do comodoro prova que ele ainda é capaz, como nos dias da sua gloriosa juventude, de comandar a fúria dos homens e das tempestades.
Muito antes do fim desta leitura, Mervyn voltou a apoiar-se no cotovelo, incapaz de seguir por mais tempo o desenvolvimento racional das frases polidas e a saponificação das metáforas obrigatórias. O pai exclama:
«Não é isto que o interessa; leiamos outra coisa. Lê, mulher; terás mais sorte que eu em afastar a tristeza dos dias do nosso filho.»
A mãe já não conserva esperança; mesmo assim, pegou noutro livro, e o timbre da sua voz de soprano ressoa melodiosamente aos ouvidos do produto da sua concepção. Mas, após algumas palavras, o desânimo apodera-se dela, e ela cessa por si mesma a interpretação da obra literária. O primogénito exclama:
«Vou-me deitar.»
Retira-se, de olhos baixos com uma fixidez fria, e sem acrescentar nada. O cão começa a soltar um latido lúgubre, pois não acha esta conduta natural, e o vento de fora, infiltrando-se desigualmente na fenda longitudinal da janela, faz vacilar a chama, abafada por duas cúpulas de cristal rosado, da lâmpada de bronze. A mãe apoia as mãos na testa, e o pai ergue os olhos para o céu. As crianças lançam olhares assustados sobre o velho marinheiro.
Mervyn fecha a porta do seu quarto a dupla volta, e a sua mão corre rapidamente sobre o papel:
«Recebi a vossa carta ao meio-dia, e perdoar-me-eis se vos fiz esperar a resposta. Não tenho a honra de vos conhecer pessoalmente, e não sabia se devia escrever-vos. Mas, como a falta de educação não mora na nossa casa, resolvi pegar na pena e agradecer-vos calorosamente pelo interesse que tomais por um desconhecido. Deus me guarde de não mostrar gratidão pela simpatia com que me cumulais. Conheço as minhas imperfeições, e não me orgulho delas. Mas, se é conveniente aceitar a amizade de uma pessoa mais velha, também o é fazer-lhe compreender que os nossos caracteres não são iguais. Com efeito, pareceis ser mais velho que eu, pois me chamais jovem, e no entanto conservo dúvidas sobre a vossa verdadeira idade. Pois como conciliar a frieza dos vossos silogismos com a paixão que deles emana? É certo que não abandonarei o lugar que me viu nascer para vos acompanhar a terras longínquas; isso só seria possível pedindo antes aos autores dos meus dias uma permissão ansiosamente aguardada. Mas, como me ordenastes guardar segredo (no sentido cúbico da palavra) sobre este assunto espiritualmente tenebroso, apressar-me-ei a obedecer à vossa sabedoria incontestável. Ao que parece, ela não enfrentaria com prazer a claridade da luz. Já que pareceis desejar que eu tenha confiança na vossa pessoa (desejo que não é descabido, agrada-me confessá-lo), tende a bondade, peço-vos, de testemunhar por mim uma confiança semelhante, e não tenhais a pretensão de crer que eu estaria tão afastado da vossa opinião que, depois de amanhã de manhã, à hora indicada, eu não fosse pontual ao encontro. Escalarei o muro do parque, pois a grade estará fechada, e ninguém será testemunha da minha partida. A falar com franqueza, que não faria eu por vós, cujo apego inexplicável se revelou rapidamente aos meus olhos deslumbrados, sobretudo espantados por tal prova de bondade, à qual me assegurei que não esperava. Pois não vos conhecia. Agora conheço-vos. Não esqueçais a promessa que me fizestes de passear na ponte do Carrousel. No caso de eu lá passar, tenho uma certeza sem igual de vos encontrar e tocar a vossa mão, desde que esta manifestação inocente de um adolescente que, ainda ontem, se inclinava perante o altar da pudicícia, não vos ofenda com a sua respeitosa familiaridade. Ora, a familiaridade não é confessável no caso de uma intimidade forte e ardente, quando a perdição é séria e convicta? E que mal haveria, afinal, pergunto-vos eu mesmo, em dizer-vos adeus ao passar, quando depois de amanhã, chova ou não, soarem cinco horas? Avaliareis vós mesmo, cavalheiro, o tacto com que concebi a minha carta; pois não me permito, numa folha solta, apta a extraviar-se, dizer-vos mais. O vosso endereço no fundo da página é um enigma. Precisei de quase um quarto de hora para o decifrar. Creio que fizestes bem em traçar as palavras de forma microscópica. Dispenso-me de assinar, e nisso imito-vos: vivemos numa era demasiado excêntrica para nos espantarmos um instante com o que possa acontecer. Teria curiosidade em saber como descobristes o lugar onde reside a minha imobilidade gelada, cercada por uma longa fila de salas desertas, imundos ossuários das minhas horas de tédio. Como dizer isto? Quando penso em vós, o meu peito agita-se, ressoando como o desmoronar de um império em decadência; pois a sombra do vosso amor acusa um sorriso que, talvez, não exista: é tão vaga, e move as suas escamas tão tortuosamente! Entre as vossas mãos, abandono os meus sentimentos impetuosos, tábuas de mármore novinhas em folha, ainda virgens de um contacto mortal. Tenhamos paciência até às primeiras luzes do crepúsculo matinal, e, na espera do momento que me lançará no entrelaçar hediondo dos vossos braços pestilentos, inclino-me humildemente aos vossos joelhos, que aperto.»
Após escrever esta carta culpada, Mervyn levou-a ao correio e voltou para se deitar. Não espereis encontrar aí o seu anjo guardião. A cauda de peixe voará apenas por três dias, é verdade; mas, ai!, a viga não deixará por isso de ser queimada; e uma bala cilindro-cónica perfurará a pele do rinoceronte, apesar da filha de neve e do mendigo! É que o louco coroado terá dito a verdade sobre a fidelidade dos catorze punhais.
Estrofe 6
Romance 4 — IV
Apercebi-me de que só tinha um olho no meio da testa! Ó espelhos de prata, incrustados nos painéis dos vestíbulos, quantos serviços não me prestastes com o vosso poder reflector! Desde o dia em que um gato angorá me roeu, durante uma hora, a bossa parietal, como um trépano que perfura o crânio, lançando-se bruscamente sobre as minhas costas, porque eu tinha fervido os seus filhotes numa cuba cheia de álcool, não cessei de lançar contra mim mesmo a seta dos tormentos.
Hoje, sob a impressão das feridas que o meu corpo recebeu em diversas circunstâncias, quer pela fatalidade do meu nascimento, quer pelo facto da minha própria culpa; oprimido pelas consequências da minha queda moral (algumas foram cumpridas; quem preverá as outras?); espectador impassível das monstruosidades adquiridas ou naturais, que decoram as aponevroses e o intelecto daquele que fala, lanço um longo olhar de satisfação sobre a dualidade que me compõe… e acho-me belo!
Belo como o vício de conformação congénita dos órgãos sexuais do homem, consistente na relativa brevidade do canal da uretra e na divisão ou ausência da sua parede inferior, de tal modo que este canal se abre a uma distância variável da glande e abaixo do pénis; ou ainda, como a carúncula carnuda, de forma cónica, sulcada por rugas transversais bastante profundas, que se ergue na base do bico superior do peru; ou antes, como a verdade que se segue:
«O sistema das escalas, dos modos e do seu encadeamento harmónico não repousa sobre leis naturais invariáveis, mas é, pelo contrário, a consequência de princípios estéticos que variaram com o desenvolvimento progressivo da humanidade, e que ainda variarão;»
e sobretudo, como uma corveta encouraçada com torres!
Sim, mantenho a exactidão da minha afirmação. Não tenho ilusões presunçosas, disso me vanglorio, e não encontraria proveito na mentira; portanto, o que disse, não deveis hesitar em acreditar. Pois por que me inspiraria eu mesmo horror, diante dos testemunhos elogiosos que partem da minha consciência?
Nada invejo ao Criador; mas que me deixe descer o rio do meu destino, através de uma série crescente de crimes gloriosos. Senão, elevando à altura da sua testa um olhar irritado por todo o obstáculo, fá-lo-ei compreender que não é o único senhor do universo; que vários fenómenos, que dependem directamente de um conhecimento mais aprofundado da natureza das coisas, depõem a favor da opinião contrária e opõem um formal desmentido à viabilidade da unidade do poder.
É que somos dois a contemplar os cílios das pálpebras, vês tu… e sabes que mais de uma vez ressoou, na minha boca sem lábios, o clarim da vitória. Adeus, guerreiro ilustre; a tua coragem na desgraça inspira estima ao teu inimigo mais ferrenho; mas Maldoror em breve te encontrará para disputar a presa que se chama Mervyn.
Assim, realizar-se-á a profecia do galo, quando ele entreviu o futuro no fundo do candelabro. Queira o céu que o caranguejo-real alcance a tempo a caravana dos peregrinos e lhes ensine, em poucas palavras, a narrativa do trapeiro de Clignancourt!
Estrofe 7
Romance 5 — V
Num banco do Palais-Royal, do lado esquerdo e não longe da peça de água, um indivíduo, vindo da Rua de Rivoli, veio sentar-se. Tem os cabelos em desalinho, e as suas roupas revelam a acção corrosiva de uma penúria prolongada. Cavou um buraco no chão com um pedaço de madeira pontiagudo e encheu de terra o côncavo da mão. Levou essa comida à boca e rejeitou-a com precipitação.
Levantou-se e, encostando a cabeça ao banco, dirigiu as pernas para cima. Mas, como esta situação funambulesca está fora das leis da gravidade que regem o centro de equilíbrio, caiu pesadamente sobre a tábua, os braços pendentes, o boné cobrindo-lhe metade da cara, e as pernas batendo no cascalho numa posição de equilíbrio instável, cada vez menos tranquilizadora. Permanece assim por muito tempo.
Perto da entrada adjacente do norte, ao lado da rotunda que contém uma sala de café, o braço do nosso herói está apoiado na grade. A sua vista percorre a superfície do rectângulo, de modo a não deixar escapar nenhuma perspectiva. Os seus olhos voltam a si mesmos após a conclusão da investigação, e ele avista, no meio do jardim, um homem que faz uma ginástica titubeante com um banco sobre o qual se esforça por se firmar, realizando milagres de força e destreza. Mas que pode a melhor intenção, ao serviço de uma causa justa, contra os desregramentos da alienação mental?
Aproximou-se do louco, ajudou-o com benevolência a recolocar a sua dignidade numa posição normal, estendeu-lhe a mão e sentou-se ao seu lado. Nota que a loucura é apenas intermitente; o acesso desapareceu; o seu interlocutor responde logicamente a todas as perguntas. Será necessário relatar o sentido das suas palavras? Por que reabrir, numa página qualquer, com um ímpeto blasfemo, o in-fólio das misérias humanas? Nada é de um ensinamento mais fecundo.
Ainda que eu não tivesse nenhum evento verdadeiro para vos relatar, inventaria relatos imaginários para os verter no vosso cérebro. Mas o doente não se tornou assim por prazer próprio; e a sinceridade dos seus relatos alia-se maravilhosamente à credulidade do leitor.
«O meu pai era carpinteiro na Rua de la Verrerie… Que a morte das três Margaridas recaia sobre a sua cabeça, e que o bico do canário lhe roa eternamente o eixo do bulbo ocular! Ele tinha contraído o hábito de se embriagar; nesses momentos, quando voltava para casa após correr os balcões das tabernas, a sua fúria tornava-se quase incomensurável, e ele batia indistintamente nos objectos que se apresentavam à sua vista. Mas, em breve, perante as censuras dos amigos, corrigiu-se completamente e tornou-se de um humor taciturno. Ninguém podia aproximar-se dele, nem mesmo a nossa mãe. Guardava um ressentimento secreto contra a ideia do dever que o impedia de se comportar à sua vontade. Eu tinha comprado um canário para as minhas três irmãs; foi para as minhas três irmãs que comprei um canário. Elas tinham-no encerrado numa gaiola, acima da porta, e os transeuntes paravam, a cada vez, para ouvir os cantos do pássaro, admirar a sua graça fugaz e estudar as suas formas sábias. Mais de uma vez, o meu pai ordenara que fizessem desaparecer a gaiola e o seu conteúdo, pois imaginava que o canário zombava da sua pessoa, lançando-lhe o ramalhete das cavatinas aéreas do seu talento de vocalista. Foi desprender a gaiola do prego e escorregou da cadeira, cego de raiva. Uma ligeira escoriação no joelho foi o troféu da sua empreitada. Após ficar alguns segundos a pressionar a parte inchada com uma lasca, baixou as calças, de sobrancelhas franzidas, tomou melhores precauções, meteu a gaiola debaixo do braço e dirigiu-se ao fundo da sua oficina. Aí, apesar dos gritos e súplicas da família (gostávamos muito desse pássaro, que era para nós como o génio da casa), esmagou com os seus calcanhares ferrados a caixa de vime, enquanto uma plaina, girando à volta da sua cabeça, mantinha os presentes à distância. O acaso quis que o canário não morresse logo; aquele floco de penas ainda vivia, apesar da mancha de sangue. O carpinteiro afastou-se e fechou a porta com estrondo. Eu e a minha mãe esforçámo-nos por reter a vida do pássaro, prestes a escapar; ele aproximava-se do fim, e o movimento das suas asas só se oferecia à vista como o espelho da suprema convulsão da agonia. Enquanto isso, as três Margaridas, ao perceberem que toda a esperança estava prestes a perder-se, deram-se as mãos, de comum acordo, e a corrente viva foi acocorar-se, após empurrar alguns passos um barril de gordura, atrás da escada, ao lado da casota da nossa cadela. A minha mãe não interrompia a sua tarefa e segurava o canário entre os dedos, para o aquecer com o seu hálito. Eu corria perdido por todos os quartos, esbarrando nos móveis e nos instrumentos. De vez em quando, uma das minhas irmãs mostrava a cabeça no fundo da escada para se informar sobre o destino do infeliz pássaro, e retirava-a com tristeza. A cadela saíra da casota e, como se tivesse compreendido a extensão da nossa perda, lambia com a língua da consolação estéril o vestido das três Margaridas. O canário tinha apenas alguns instantes de vida. Uma das minhas irmãs, por sua vez (era a mais nova), apresentou a cabeça na penumbra formada pela rarefacção da luz. Viu a minha mãe empalidecer, e o pássaro, após erguer o pescoço por um instante, na última manifestação do seu sistema nervoso, caiu entre os seus dedos, inerte para sempre. Ela anunciou a notícia às irmãs. Não emitiram o sussurro de nenhuma queixa, de nenhum murmúrio. O silêncio reinava na oficina. Só se distinguia o estalido intermitente dos fragmentos da gaiola que, pela elasticidade da madeira, recuperavam em parte a posição primordial da sua construção. As três Margaridas não deixavam escorrer nenhuma lágrima, e o seu rosto não perdia a frescura purpúrea; não… apenas permaneciam imóveis. Arrastaram-se até ao interior da casota e estenderam-se na palha, uma ao lado da outra; enquanto a cadela, testemunha passiva da sua manobra, as olhava com espanto. Por várias vezes, a minha mãe as chamou; não deram o som de nenhuma resposta. Cansadas pelas emoções anteriores, dormiam, provavelmente! Ela vasculhou todos os cantos da casa sem as avistar. Seguiu a cadela, que a puxava pelo vestido, até à casota. Esta mulher abaixou-se e colocou a cabeça na entrada. O espectáculo de que pôde ser testemunha, descontando as exagerações malsãs do medo materno, só podia ser desolador, segundo os cálculos do meu espírito. Acendi uma vela e apresentei-lha; deste modo, nenhum detalhe lhe escapou. Ela retirou a cabeça, coberta de palhinhas, da tumba prematura, e disse-me:
«As três Margaridas estão mortas.»
Como não podíamos tirá-las daquele lugar, pois, notai bem isto, estavam estreitamente entrelaçadas, fui buscar um martelo na oficina para quebrar a casota canina. Pus-me imediatamente à obra de demolição, e os transeuntes poderiam crer, com um pouco de imaginação, que o trabalho não parava em nossa casa. A minha mãe, impaciente com estes atrasos que, no entanto, eram indispensáveis, partia as unhas contra as tábuas. Por fim, a operação de libertação negativa terminou; a casota fendida abriu-se por todos os lados; e retirámos, dos escombros, uma após outra, após as separarmos com dificuldade, as filhas do carpinteiro. A minha mãe deixou o país. Nunca mais vi o meu pai. Quanto a mim, dizem que sou louco, e imploro a caridade pública. O que sei é que o canário não canta mais.»
O ouvinte aprova interiormente este novo exemplo trazido em apoio às suas repugnantes teorias. Como se, por causa de um homem outrora ébrio, se tivesse o direito de acusar toda a humanidade. Tal é, pelo menos, a reflexão paradoxal que ele procura introduzir no seu espírito; mas ela não consegue expulsar os ensinamentos importantes da grave experiência.
Consola o louco com uma compaixão fingida e enxuga-lhe as lágrimas com o seu próprio lenço. Leva-o a um restaurante, e comem à mesma mesa. Vão a um alfaiate da moda, e o protegido é vestido como príncipe. Batem à porta do porteiro de uma grande casa na Rua Saint-Honoré, e o louco é instalado num rico apartamento no terceiro andar. O bandido força-o a aceitar a sua bolsa e, pegando no urinol debaixo da cama, coloca-o na cabeça de Aghone.
«Eu te coroo rei das inteligências», exclama com uma ênfase premeditada; «ao teu menor chamado, acorrerei; mete a mão cheia nos meus cofres; de corpo e alma, pertenço-te. À noite, devolverás a coroa de alabastro ao seu lugar habitual, com permissão para a usares; mas, de dia, assim que a aurora iluminar as cidades, coloca-a de novo na tua testa, como símbolo do teu poder. As três Margaridas reviverão em mim, sem contar que serei a tua mãe.»
Então o louco recuou alguns passos, como se fosse presa de um pesadelo insultuoso; as linhas da felicidade desenharam-se no seu rosto, enrugado pelos desgostos; ajoelhou-se, cheio de humilhação, aos pés do seu protector. A gratidão entrara, como um veneno, no coração do louco coroado! Quis falar, e a sua língua parou. Inclinou o corpo para a frente, e caiu sobre o chão.
O homem de lábios de bronze retira-se. Qual era o seu objectivo? Ganhar um amigo à prova de tudo, ingénuo o suficiente para obedecer ao menor dos seus comandos. Não podia ter encontrado melhor, e o acaso favorecera-o. Aquele que encontrou, deitado no banco, já não sabe, desde um evento da sua juventude, distinguir o bem do mal. É exactamente o Aghone de que precisa.
Estrofe 8
Romance 6 — VI
O Todo-Poderoso enviara à terra um dos seus arcanjos para salvar o adolescente de uma morte certa. Será forçado a descer ele mesmo! Mas ainda não chegámos a essa parte do nosso relato, e vejo-me na obrigação de fechar a boca, pois não posso dizer tudo de uma vez: cada golpe de efeito surgirá no seu lugar, quando o enredo desta ficção não encontrar inconveniente nisso.
Para não ser reconhecido, o arcanjo tomara a forma de um caranguejo-real, grande como uma vigonha. Estava na ponta de um recife, no meio do mar, e aguardava o momento favorável da maré para efectuar a sua descida até à costa. O homem de lábios de jaspe, escondido atrás de uma sinuosidade da praia, espiava o animal, com um bastão na mão. Quem desejaria ler o pensamento destes dois seres?
O primeiro não escondia que tinha uma missão difícil a cumprir:
«Como poderei ter êxito», exclamava ele, enquanto as ondas crescentes batiam no seu refúgio temporário, «ali onde o meu mestre viu mais de uma vez falhar a sua força e coragem? Eu sou apenas uma substância limitada, enquanto o outro, ninguém sabe de onde vem nem qual é o seu objectivo final. Ao seu nome, os exércitos celestiais tremem; e mais de um conta, nas regiões que deixei, que o próprio Satanás, Satanás, a encarnação do mal, não é tão temível.»
O segundo fazia as seguintes reflexões; elas encontraram um eco até na cúpula azulada que profanaram:
«Ele parece cheio de inexperiência; vou resolver o caso dele rapidinho. Deve vir lá de cima, mandado por aquele que tem tanto medo de vir ele mesmo! Vamos ver, na prática, se ele é tão mandão como parece; não é um habitante do abricó terrestre; trai a sua origem seráfica pelos olhos errantes e indecisos.»
O caranguejo-real, que há algum tempo passeava o olhar por um espaço delimitado da costa, avistou o nosso herói (este, então, ergueu-se em toda a altura da sua estatura hercúlea) e interpela-o com os termos que se seguem:
«Não tentes lutar e rende-te. Fui enviado por alguém superior a nós dois, para te prender com correntes e tornar os dois membros cúmplices do teu pensamento incapazes de se mover. Segurar facas e punhais entre os teus dedos deve-te ser doravante proibido, acredita-me; tanto no teu interesse como no dos outros. Morto ou vivo, eu te terei; tenho ordens para te levar vivo. Não me obrigues a recorrer ao poder que me foi emprestado. Conduzir-me-ei com delicadeza; da tua parte, não me opposes resistência. Será assim que reconhecerei, com entusiasmo e alegria, que terás dado um primeiro passo rumo ao arrependimento.»
Quando o nosso herói ouviu este discurso, impregnado de um sal tão profundamente cómico, teve dificuldade em manter a seriedade na rudeza dos seus traços bronzeados. Mas, enfim, ninguém se surpreenderá se eu acrescentar que acabou por desatar a rir. Era mais forte do que ele! Não havia má intenção nisso! Certamente não queria atrair as censuras do caranguejo-real! Quantos esforços não fez para afastar a hilaridade! Quantas vezes não apertou os lábios um contra o outro, para não parecer ofender o seu interlocutor perplexo! Infelizmente, o seu carácter participava da natureza da humanidade, e ele ria como riem as ovelhas! Por fim, parou! Era tempo! Quase se sufocara!
O vento levou esta resposta ao arcanjo do recife:
«Quando o teu mestre deixar de me enviar caracóis e lagostas para resolver os seus assuntos, e se dignar parlamentar pessoalmente comigo, encontrar-se-á, tenho a certeza, uma forma de nos entendermos, pois sou inferior àquele que te enviou, como disseste com tanta justeza. Até lá, as ideias de reconciliação parecem-me prematuras e aptas a produzir apenas um resultado quimérico. Estou muito longe de desconhecer o que há de sensato em cada uma das tuas sílabas; e, como poderíamos cansar inutilmente a nossa voz para a fazer percorrer três quilómetros de distância, parece-me que agirias com sabedoria se descesses da tua fortaleza inexpugnável e nadasses até à terra firme: discutiremos mais comodamente as condições de uma rendição que, por mais legítima que seja, não deixa de ser, afinal, para mim, de uma perspectiva desagradável.»
O arcanjo, que não esperava tal boa vontade, ergueu a cabeça um pouco mais das profundezas da fenda e respondeu:
«Ó Maldoror, terá finalmente chegado o dia em que os teus abomináveis instintos verão extinguir-se o facho do orgulho injustificável que os conduz à danação eterna! Serei eu, então, o primeiro a relatar esta louvável mudança às falanges dos querubins, felizes por recuperar um dos seus. Tu próprio sabes e não esqueceste que houve uma época em que ocupavas o teu primeiro lugar entre nós. O teu nome voava de boca em boca; és agora o tema das nossas conversas solitárias. Vem, pois… vem fazer uma paz duradoura com o teu antigo mestre; ele receber-te-á como um filho perdido, e não reparará na enorme quantidade de culpa que acumulaste, como uma montanha de chifres de alce erguida pelos índios, sobre o teu coração.»
Disse, e retirou todas as partes do seu corpo do fundo da abertura obscura. Mostra-se, radiante, na superfície do recife; assim como um padre das religiões quando tem a certeza de trazer de volta uma ovelha tresmalhada. Vai dar um salto sobre a água, para nadar em direcção ao perdoado. Mas o homem de lábios de safira calculou há muito um golpe pérfido. O seu bastão é lançado com força; após vários ricochetes sobre as ondas, vai atingir a cabeça do arcanjo benfeitor. O caranguejo, ferido mortalmente, cai na água. A maré traz à costa o destroço flutuante.
Ele esperava a maré para facilitar a sua descida. Pois bem, a maré veio; embalou-o com os seus cantos e depositou-o suavemente na praia: não está o caranguejo satisfeito? Que mais lhe falta? E Maldoror, inclinado sobre a areia das praias, recebe nos braços dois amigos, inseparavelmente reunidos pelos acasos da onda: o cadáver do caranguejo-real e o bastão homicida!
«Ainda não perdi a minha perícia», exclama; «ela só pede para se exercitar; o meu braço conserva a força e o meu olho a precisão.»
Olha o animal inanimado. Teme que lhe peçam contas do sangue derramado. Onde esconderá o arcanjo? E, ao mesmo tempo, pergunta-se se a morte não terá sido instantânea. Colocou nas costas uma bigorna e um cadáver; dirige-se a uma vasta peça de água, cujas margens estão todas cobertas e como muradas por um emaranhado inextricável de grandes juncos.
Queria primeiro pegar num martelo, mas é um instrumento leve demais, enquanto com um objecto mais pesado, se o cadáver der sinais de vida, ele o pousará no chão e reduzi-lo-á a pó com golpes de bigorna. Não é a força que falta ao seu braço, isso é o menor dos seus problemas. Ao chegar à vista do lago, vê-o povoado de cisnes. Diz para si mesmo que é um refúgio seguro para ele; com uma metamorfose, sem abandonar a sua carga, mistura-se ao grupo dos outros pássaros.
Notai a mão da Providência onde se poderia pensar que ela estava ausente, e tirai proveito do milagre de que vos vou falar. Negro como a asa de um corvo, três vezes nadou entre o grupo de palmípedes de brancura resplandecente; três vezes manteve essa cor distintiva que o assemelhava a um bloco de carvão. É que Deus, na sua justiça, não permitiu que o seu ardil pudesse enganar nem mesmo um grupo de cisnes.
De tal modo que permaneceu ostensivamente no interior do lago; mas todos se mantiveram à distância, e nenhum pássaro se aproximou da sua plumagem vergonhosa para lhe fazer companhia. E então, limitou os seus mergulhos a uma baía isolada, na extremidade da peça de água, sozinho entre os habitantes do ar, como o era entre os homens! Foi assim que preludiou o incrível evento da Praça Vendôme!
Estrofe 9
Romance 7 — VII
O corsário de cabelos dourados recebeu a resposta de Mervyn. Segue nesta página singular o rasto dos tormentos intelectuais daquele que a escreveu, abandonado às frágeis forças da sua própria sugestão. Este teria feito muito melhor se consultasse os seus pais antes de responder à amizade do desconhecido. Nenhum benefício resultará para ele de se envolver, como actor principal, nesta intriga equívoca. Mas, enfim, ele quis assim.
Na hora indicada, Mervyn, saindo da porta da sua casa, foi directo em frente, seguindo o Boulevard Sébastopol, até à Fonte Saint-Michel. Toma o Cais dos Grands-Augustins e atravessa o Cais Conti; no momento em que passa pelo Cais Malaquais, vê caminhar no Cais do Louvre, paralelamente à sua própria direcção, um indivíduo, carregando um saco debaixo do braço, que parece examiná-lo com atenção. Os vapores da manhã dissiparam-se. Os dois transeuntes desembocam ao mesmo tempo de cada lado da Ponte do Carrousel.
Embora nunca se tivessem visto, reconheceram-se! Verdade, era comovente ver estes dois seres, separados pela idade, aproximarem as suas almas pela grandeza dos sentimentos. Pelo menos, teria sido a opinião daqueles que se detivessem perante este espectáculo, que mais de um, mesmo com um espírito matemático, acharia tocante. Mervyn, de rosto em lágrimas, reflectia que encontrava, por assim dizer na entrada da vida, um apoio precioso nas futuras adversidades. Estejais persuadido de que o outro nada dizia.
Eis o que fez: desdobrou o saco que trazia, abriu a entrada e, agarrando o adolescente pela cabeça, fez passar todo o corpo para dentro da bolsa de lona. Amarrou, com o seu lenço, a extremidade que servia de abertura. Como Mervyn soltava gritos agudos, retirou o saco, juntamente com um monte de panos, e bateu com ele, várias vezes, no parapeito da ponte. Então, o paciente, ao perceber o estalar dos seus ossos, calou-se.
Cena única, que nenhum romancista repetirá! Um talhante passava, sentado sobre a carne da sua carroça. Um indivíduo corre até ele, pede-lhe que pare e diz:
«Aqui está um cão, fechado neste saco; tem sarna: abate-o o mais depressa possível.»
O interpelado mostra-se complacente. O interruptor, ao afastar-se, avista uma jovem em farrapos que lhe estende a mão. Até onde vai o cúmulo da audácia e da impiedade? Dá-lhe uma esmola!
Dizei-me se quereis que vos introduza, algumas horas mais tarde, à porta de um matadouro afastado. O talhante voltou e disse aos seus camaradas, atirando um fardo ao chão:
«Vamos depressa matar este cão sarnento.»
São quatro, e cada um pega no martelo habitual. E, no entanto, hesitavam, porque o saco mexia-se com força.
«Que emoção me toma?» gritou um deles, baixando lentamente o braço.
«Este cão solta, como uma criança, gemidos de dor», disse outro; «parece que compreende o destino que o espera.»
«É o costume deles», respondeu um terceiro; «mesmo quando não estão doentes, como é o caso aqui, basta que o dono fique uns dias fora de casa para que comecem a soltar uivos que, verdadeiramente, são penosos de suportar.»
«Parem!... Parem!...» gritou o quarto, antes que todos os braços se erguessem em cadência para golpear decididamente, desta vez, o saco. «Parem, digo-vos; há aqui um facto que nos escapa. Quem vos diz que esta lona contém um cão? Quero certificar-me.»
Então, apesar das zombarias dos companheiros, desatou o pacote e retirou, um após outro, os membros de Mervyn! Estava quase sufocado pela dificuldade daquela posição. Desmaiou ao rever a luz. Alguns momentos depois, deu sinais indubitáveis de vida. O salvador disse:
«Aprendei, da próxima vez, a pôr prudência até no vosso ofício. Quase descobristes, por vós mesmos, que de nada serve praticar a desobediência a essa lei.»
Os talhantes fugiram. Mervyn, com o coração apertado e cheio de pressentimentos funestos, regressa a casa e tranca-se no seu quarto. Preciso de insistir nesta estrofa? Quem não deplorará os acontecimentos consumados! Esperemos o desfecho para emitir um julgamento ainda mais severo.
O desenlace vai precipitar-se; e, neste tipo de relatos, onde uma paixão, de qualquer género que seja, uma vez dada, não teme obstáculo algum para abrir o seu caminho, não há lugar para diluir num godé a goma-laca de quatrocentas páginas banais. O que pode ser dito numa meia dúzia de estrofas, deve ser dito, e depois calar-se.
Estrofe 10
Romance 8 — VIII
Para construir mecanicamente o cérebro de um conto soporífero, não basta dissecar disparates e entorpecer poderosamente, com doses renovadas, a inteligência do leitor, de modo a tornar as suas faculdades paralíticas pelo resto da vida, pela lei infalível da fadiga; é preciso, além disso, com um bom fluido magnético, colocá-lo engenhosamente na impossibilidade sonambúlica de se mover, forçando-o a obscurecer os olhos contra a sua natureza pela fixidez dos vossos.
Quero dizer, para não me fazer entender melhor, mas apenas para desenvolver o meu pensamento, que interessa e irrita ao mesmo tempo por uma harmonia das mais penetrantes, que não creio ser necessário, para alcançar o objectivo que se propõe, inventar uma poesia completamente fora do curso ordinário da natureza, cujo sopro pernicioso parece abalar até as verdades absolutas; mas alcançar tal resultado (conforme, aliás, às regras da estética, se bem se reflectir) não é tão fácil quanto se pensa: era isso que eu queria dizer. Por isso, farei todos os meus esforços para o conseguir!
Se a morte detiver a magreza fantástica dos dois longos braços dos meus ombros, empregados no esmagamento lúgubre do meu gesso literário, quero ao menos que o leitor enlutado possa dizer:
«É preciso fazer-lhe justiça. Ele cretinizou-me bastante. O que não teria ele feito, se tivesse vivido mais! É o melhor professor de hipnotismo que conheço!»
Gravar-se-ão estas poucas palavras comoventes no mármore da minha tumba, e as minhas almas estarão satisfeitas! — Continuo!
Havia uma cauda de peixe que se mexia no fundo de um buraco, ao lado de uma bota gasta. Não era natural perguntar-se:
«Onde está o peixe? Só vejo a cauda a mexer-se.»
Pois, dado que se admitia implicitamente não avistar o peixe, é porque, na realidade, ele não estava lá. A chuva deixara algumas gotas de água no fundo deste funil, cavado na areia. Quanto à bota gasta, alguns pensaram depois que provinha de algum abandono voluntário.
O caranguejo-real, pelo poder divino, devia renascer dos seus átomos dissolvidos. Retirou do poço a cauda de peixe e prometeu reatá-la ao seu corpo perdido, se ela anunciasse ao Criador a impotência do seu mandatário em dominar as ondas furiosas do mar maldororiano. Emprestou-lhe duas asas de albatroz, e a cauda de peixe alçou voo. Mas voou em direcção à morada do renegado, para lhe contar o que se passava e trair o caranguejo-real.
Este adivinhou o plano da espia e, antes que o terceiro dia chegasse ao fim, trespassou a cauda do peixe com uma flecha envenenada. A garganta da espia soltou uma fraca exclamação, que deu o último suspiro antes de tocar o chão.
Então, uma viga secular, colocada no cume de um castelo, ergueu-se em toda a sua altura, saltando sobre si mesma, e pediu vingança em altos gritos. Mas o Todo-Poderoso, transformado em rinoceronte, informou-lhe que essa morte era merecida. A viga acalmou-se, foi colocar-se no fundo do solar, retomou a sua posição horizontal e chamou as aranhas assustadas, para que continuassem, como outrora, a tecer as suas teias nos seus cantos.
O homem de lábios de enxofre soube da fraqueza da sua aliada; por isso, ordenou ao louco coroado que queimasse a viga e a reduzisse a cinzas. Aghone executou essa ordem severa.
«Já que, segundo vós, o momento chegou», exclamou ele, «fui buscar o anel que tinha enterrado debaixo da pedra, e amarrei-o a uma das pontas do cabo. Aqui está o pacote.»
E apresentou uma corda grossa, enrolada sobre si mesma, com sessenta metros de comprimento. O seu mestre perguntou-lhe o que faziam os catorze punhais. Ele respondeu que permaneciam fiéis e estavam prontos para qualquer eventualidade, se fosse necessário. O forçado inclinou a cabeça em sinal de satisfação.
Mostrou surpresa, e até inquietação, quando Aghone acrescentou que vira um galo partir ao meio um candelabro com o bico, mergulhar o olhar em cada uma das partes, e gritar, batendo as asas num movimento frenético:
«Não é tão longe como se pensa da Rua da Paz até à Praça do Panteão. Em breve, veremos a prova lamentável disso!»
O caranguejo-real, montado num cavalo fogoso, corria a toda a brida na direcção do recife, testemunha do lançamento do bastão por um braço tatuado, o refúgio do primeiro dia da sua descida à terra. Uma caravana de peregrinos estava em marcha para visitar esse lugar, agora consagrado por uma morte augusta. Ele esperava alcançá-la, para lhe pedir socorro urgente contra o plano que se preparava, e do qual tivera conhecimento.
Vereis algumas linhas mais adiante, com a ajuda do meu silêncio glacial, que ele não chegou a tempo de lhes contar o que lhe relatara um trapeiro, escondido atrás do andaime vizinho de uma casa em construção, no dia em que a Ponte do Carrousel, ainda impregnada do orvalho húmido da noite, viu com horror o horizonte do seu pensamento alargar-se confusamente em círculos concêntricos, ao surgir matinal o ritmado amassamento de um saco icosaédrico contra o seu parapeito calcário! Antes que estimule a compaixão deles com a memória deste episódio, farão bem em destruir em si mesmos a semente da esperança…
Para romper a vossa preguiça, ponde em uso os recursos de uma boa vontade, caminhai ao meu lado e não percais de vista este louco, com a cabeça coroada por um urinol, que empurra à sua frente a mão armada de um bastão, aquele que teríeis dificuldade em reconhecer, se eu não tomasse o cuidado de vos avisar e de lembrar ao vosso ouvido a palavra que se pronuncia Mervyn. Como ele está mudado! Com as mãos atadas atrás das costas, caminha à sua frente, como se fosse para o cadafalso, e, no entanto, não é culpado de nenhum crime.
Chegaram ao recinto circular da Praça Vendôme. Sobre o entablamento da coluna maciça, apoiado contra a balaustrada quadrada, a mais de cinquenta metros do chão, um homem lançou e desenrolou um cabo, que cai até à terra, a poucos passos de Aghone. Com prática, faz-se uma coisa depressa; mas posso dizer que este não demorou muito a atar os pés de Mervyn à extremidade da corda.
O rinoceronte soubera o que ia acontecer. Coberto de suor, apareceu ofegante, na esquina da Rua Castiglione. Nem sequer teve a satisfação de iniciar o combate. O indivíduo, que examinava os arredores do alto da coluna, armou o seu revólver, mirou com cuidado e puxou o gatilho. O comodoro, que mendigava pelas ruas desde o dia em que começara o que acreditava ser a loucura do seu filho, e a mãe, chamada filha da neve por causa da sua extrema palidez, avançaram o peito para proteger o rinoceronte. Cuidado inútil. A bala perfurou a sua pele como uma broca; poder-se-ia crer, com uma aparência de lógica, que a morte deveria inevitavelmente surgir. Mas sabíamos que, nesse paquiderme, se introduzira a substância do Senhor. Retirou-se com tristeza.
Se não estivesse bem provado que ele não fosse demasiado bom para uma das suas criaturas, eu lamentaria o homem da coluna! Este, com um golpe seco do pulso, puxa para si a corda assim carregada. Fora do normal, as suas oscilações balançam Mervyn, cuja cabeça olha para baixo. Ele agarra vivamente, com as mãos, uma longa guirlanda de imortais, que une dois ângulos consecutivos da base, contra a qual encosta a testa. Leva consigo, pelos ares, o que não era um ponto fixo.
Após amontoar aos seus pés, sob a forma de elipses sobrepostas, uma grande parte do cabo, de modo que Mervyn fique suspenso a meia altura do obelisco de bronze, o forçado fugitivo faz com que a mão direita dê ao adolescente um movimento acelerado de rotação uniforme, num plano paralelo ao eixo da coluna, e recolhe, com a mão esquerda, os enrolamentos serpentinos do cordame que jazem aos seus pés.
A funda sibila no espaço; o corpo de Mervyn segue-a por todo o lado, sempre afastado do centro pela força centrífuga, mantendo sempre a sua posição móvel e equidistante, numa circunferência aérea, independente da matéria. O selvagem civilizado solta aos poucos, até à outra extremidade, que segura com um metacarpo firme, algo que se assemelha erradamente a uma barra de aço.
Começa a correr à volta da balaustrada, segurando-se à grade com uma mão. Esta manobra tem o efeito de mudar o plano primitivo da rotação do cabo e aumentar a sua força de tensão, já tão considerável. Doravante, gira majestosamente num plano horizontal, após ter passado, por uma transição imperceptível, por vários planos oblíquos. O ângulo recto formado pela coluna e o fio vegetal tem os lados iguais! O braço do renegado e o instrumento assassino confundem-se na unidade linear, como os elementos atomísticos de um raio de luz que penetra na câmara escura.
Os teoremas da mecânica permitem-me falar assim; ai!, sabe-se que uma força, somada a outra força, gera uma resultante composta das duas forças primitivas! Quem ousaria afirmar que o cordame linear já não se teria partido, sem a vigor do atleta, sem a boa qualidade do cânhamo?
O corsário de cabelos dourados, brusca e simultaneamente, detém a velocidade adquirida, abre a mão e solta o cabo. O contragolpe desta operação, tão contrária às anteriores, faz estalar a balaustrada nas suas juntas. Mervyn, seguido da corda, assemelha-se a um cometa arrastando atrás de si a sua cauda flamejante. O anel de ferro do laço corredio, reluzindo aos raios do sol, convida a completar por si mesmo a ilusão.
No trajecto da sua parábola, o condenado à morte corta a atmosfera até à margem esquerda, ultrapassa-a em virtude da força de impulsão que suponho infinita, e o seu corpo vai bater no domo do Panteão, enquanto a corda envolve, em parte, com os seus dobrões, a parede superior da imensa cúpula.
É na sua superfície esférica e convexa, que só se assemelha a uma laranja pela forma, que se vê, a toda a hora do dia, um esqueleto ressequido, suspenso. Quando o vento o balança, conta-se que os estudantes do Bairro Latino, temendo um destino semelhante, fazem uma breve oração: são rumores insignificantes em que não se é obrigado a acreditar, e próprios apenas para assustar criancinhas.
Ele segura entre as mãos crispadas, como uma longa fita de velhas flores amarelas. É preciso ter em conta a distância, e ninguém pode afirmar, apesar da garantia da sua boa visão, que sejam realmente essas imortais de que vos falei, e que uma luta desigual, travada perto da nova Ópera, viu arrancar de um pedestal grandioso. Não é menos verdade que as drapeadas em forma de crescente lunar já não recebem a expressão da sua simetria definitiva no número quaternário: ide lá ver vós mesmos, se não quereis acreditar-me.