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Os Cantares de Maldoror (Português Brasileiro - Quarto Cantar)

Os Cantares de Maldoror (Português Brasileiro)

Quarto Cantar

Estrofe 1

É um cara, uma pedra ou uma árvore que vai começar o quarto canto. Quando o pé escorrega numa rã, a gente sente um nojo danado; mas, quando mal encosta a mão no corpo humano, a pele dos dedos racha, que nem as escamas dum bloco de mica que a gente quebra a marteladas; e, igual o coração dum tubarão, morto há uma hora, ainda pulsa no convés com uma vitalidade teimosa, assim nossas tripas se mexem de cima a baixo, muito depois do toque. Tanto horror o cara inspira no seu próprio igual! Pode ser que, falando isso, eu me engane; mas pode ser também que eu tô falando a verdade. Eu conheço, eu imagino uma doença mais braba que os olhos inchados de tanto pensar no jeito esquisito do homem: mas ainda tô procurando ela… e não achei! Não me acho menos esperto que outro, e mesmo assim, quem ia ousar dizer que eu consegui nas minhas buscas? Que mentira ia sair da boca dele!

O templo antigo de Dendera fica a uma hora e meia da margem esquerda do Nilo. Hoje, um monte de vespas tomou conta dos sulcos e das cornijas. Elas voam em volta das colunas, que nem ondas grossas duma cabeleira preta. Únicos moradores do pórtico gelado, elas guardam a entrada dos vestíbulos que nem um direito de família. Eu comparo o zumbido das asas metálicas delas ao barulho sem fim dos blocos de gelo, jogados uns contra os outros, quando o mar polar descongela. Mas, se eu penso no jeito daquele que a providência botou no trono dessa terra, as três nadadeiras da minha dor soltam um barulho ainda maior! Quando um cometa, de noite, aparece de repente numa parte do céu, depois de oitenta anos sumido, ele mostra pros moradores da terra e pros grilos a cauda brilhante e leve dele. Claro, ele não tem noção dessa viagem longa; comigo não é assim: debruçado na cabeceira da minha cama, enquanto as bordas dum horizonte seco e sinistro sobem fortes no fundo da minha alma, eu me perco nos sonhos da pena e fico com vergonha do homem!

Cortado ao meio pelo vento, o marinheiro, depois de fazer o turno da noite, corre pra voltar pro catre dele: por que esse alívio não me é dado? A ideia de que eu caí, de propósito, tão baixo quanto meus iguais, e que eu tenho menos direito que outro de soltar queixas sobre nosso destino, que fica preso na crosta dura dum planeta, e sobre a essência da nossa alma sacana, me atravessa que nem prego quente. Já viram explosões de gás grisú acabarem com famílias inteiras; mas elas sofreram pouco na agonia, porque a morte vem quase na hora, no meio dos escombros e dos gases podres: eu… continuo existindo que nem basalto! No meio, como no começo da vida, os anjos são iguais a eles mesmos: não faz muito que eu não sou mais igual a mim!

O cara e eu, trancados nos limites da nossa inteligência, que nem um lago numa cintura de ilhas de coral, em vez de juntar nossas forças pra se defender do acaso e da desgraça, a gente se afasta, com o tremor do ódio, pegando dois caminhos contrários, como se a gente tivesse se furado um ao outro com a ponta duma faca! Parece que um saca o desprezo que causa no outro; levados pelo motivo duma dignidade relativa, a gente corre pra não deixar o adversário se enganar; cada um fica no seu canto e sabe que a paz falada não ia dar pra segurar. Beleza, que seja! Que minha guerra contra o homem dure pra sempre, já que cada um vê no outro a própria baixaria… já que os dois são inimigos mortais. Se eu tiver que ganhar uma vitória ferrada ou me ferrar, a briga vai ser foda: eu, sozinho, contra a humanidade. Não vou usar armas feitas de madeira ou ferro; vou chutar pra longe as camadas de minerais tiradas da terra: o som poderoso e angelical da harpa vai virar, nos meus dedos, um talismã brabo. Em mais duma emboscada, o homem, esse macaco sublime, já furou meu peito com a lança de pórfiro dele: um soldado não mostra as feridas, por mais foda que sejam. Essa guerra doida vai jogar dor nos dois lados: dois amigos que tentam se destruir com teimosia, que drama!


Estrofe 2

Dois pilares, que não era difícil nem muito menos impossível confundir com baobás, dava pra ver no vale, maiores que duas agulhas. Na real, eram duas torres danadas. E, mesmo que dois baobás, de cara, não pareçam duas agulhas, nem mesmo duas torres, ainda assim, usando os truques da prudência com jeitinho, dá pra dizer, sem medo de meter o pé na jaca (porque, se essa fala viesse com um pingo de medo, já não ia ser uma fala firme; mesmo que um nome só cubra esses dois lances da alma que têm jeitos bem diferentes pra não serem misturados assim de qualquer jeito), que um baobá não é tão diferente dum pilar que a comparação entre essas formas arquitetônicas… ou geométricas… ou as duas… ou nenhuma… ou melhor, formas altas e grossas, seja proibida. Acabei de achar, não vou bancar o convencido dizendo o contrário, os apelidos certos pros nomes pilar e baobá: que fique bem claro que não é sem uma alegria misturada com orgulho que eu aponto isso praqueles que, depois de levantar as pálpebras, tomaram a decisão foda de ler essas páginas, enquanto a vela queima, se for de noite, enquanto o sol brilha, se for de dia.

E mesmo assim, se uma força maior mandasse, bem direitinho, a gente jogar nos buracos do caos a comparação esperta que todo mundo com certeza curtiu sem problema, mesmo aí, e principalmente aí, que ninguém perca de vista esse axioma básico: os costumes pegos pelos anos, os livros, o rolé com os iguais e o jeito que cada um tem, que cresce rápido que nem flor, iam botar no cérebro humano a marca braba da reincidência, no uso sacana (sacana, se a gente se botar por um instante e sem pensar no lugar dessa força maior) duma figura de retórica que um monte despreza, mas um monte bota no altar. Se o leitor achar essa frase longa pra caramba, aceito as desculpas dele; mas que ele não espere que eu me rasteje. Posso confessar meus erros; mas não vou fazer eles piorarem com minha covardia.

Meus pensamentos vão bater, às vezes, nos guizos da loucura e no jeito sério do que, no fundo, é só grotesco (mesmo que, pra uns filósofos, seja dureza separar o palhaço do triste, já que a vida mesma é um drama engraçado ou uma comédia dramática); mas todo mundo pode matar moscas e até rinocerontes, pra dar um tempo de vez em quando dum trampo muito puxado. Pra matar moscas, aqui vai o jeito mais rápido, mesmo não sendo o melhor: é esmagar elas entre os dois primeiros dedos da mão. A maioria dos escritores que fuçaram esse tema a fundo calcularam, com um monte de chance de acertar, que é melhor, em vários casos, cortar a cabeça delas. Se alguém me botar pra baixo por falar de agulhas como um assunto bobo pra caramba, que ele olhe, sem lado, que os maiores efeitos já vieram, muitas vezes, das menores causas. E, pra não fugir mais do espaço dessa folha de papel, não dá pra ver que o pedaço trabalhoso de literatura que eu tô escrevendo, desde o começo dessa estrofe, ia ser, talvez, menos curtido se pegasse como base uma questão chata de química ou de doença interna? De resto, todo gosto tá na natureza; e, quando no começo eu comparei os pilares com as agulhas com tanta precisão (claro, não achava que um dia iam me jogar isso na cara), me baseei nas leis da óptica, que dizem que, quanto mais o raio da visão se afasta dum bagulho, mais a imagem aparece pequena na retina.

É assim que o que a nossa cabeça acha que é só uma piada sem graça acaba sendo, na maioria das vezes, na ideia do autor, só uma verdade foda, dita com majestade! Ô! Esse filósofo doido que caiu na gargalhada vendo um burro comer um figo! Não tô inventando nada: os livros velhos contaram, com um monte de detalhes, esse desleixo safado e de propósito da nobreza humana. Eu não sei rir. Nunca consegui rir, mesmo tendo tentado várias vezes. É brabo aprender a rir. Ou, melhor, acho que um nojo por essa monstruosidade é uma marca forte do meu jeito. Beleza, eu vi uma coisa mais braba: vi um figo comer um burro! E, mesmo assim, não ri; de verdade, nenhuma parte da boca mexeu. A vontade de chorar me pegou tão forte que meus olhos deixaram pingar uma lágrima.

«Natureza! Natureza!», gritei chorando, «o gavião rasga o pardal, o figo come o burro e o verme devora o cara!»

Sem decidir ir mais fundo, me pergunto se falei do jeito de matar moscas. Sim, não foi? Não deixa de ser verdade que eu não falei da destruição dos rinocerontes! Se uns amigos me dissessem o contrário, eu não ia dar ouvidos, e ia lembrar que o elogio e a bajulação são duas pedras grandes no caminho. Mas, pra deixar minha consciência o mais tranquila possível, não dá pra evitar apontar que essa dissertação sobre o rinoceronte me levaria pra além dos limites da paciência e do sangue-frio, e, por outro lado, ia desanimar com certeza (vamos ter até a ousadia de dizer certeza total) as gerações de agora. Não ter falado do rinoceronte depois da mosca! Pelo menos, como desculpa razoável, eu devia ter falado rápido (e não falei!) dessa omissão sem querer, que não vai surpreender quem fuçou a fundo as contradições reais e doidas que moram nos lobos do cérebro humano.

Nada é indigno pra uma inteligência grande e simples: o menor lance da natureza, se tiver mistério, vira, pro sábio, um material sem fim pra pensar. Se alguém vê um burro comer um figo ou um figo comer um burro (esses dois lances não rolam muito, a não ser na poesia), pode ter certeza que, depois de pensar dois ou três minutos pra saber o que fazer, ele vai largar o caminho da virtude e começar a rir que nem galo! Mesmo assim, não tá exatamente provado que os galos abrem o bico de propósito pra copiar o cara e fazer uma careta sofrida. Chamo de careta nos pássaros o que tem o mesmo nome na humanidade! O galo não sai do jeito dele, menos por não dar conta que por orgulho. Ensina eles a ler, eles se revoltam. Não é um papagaio, que ia ficar bobo assim na frente da fraqueza dele, ignorante e sem perdão! Ô! Abaixamento nojento! Como a gente fica que nem cabra quando ri! A calma da testa some pra dar lugar a dois olhos danados de peixe que (não é uma desgraça?)… que… que começam a brilhar que nem faróis!

Muitas vezes, eu vou soltar, com seriedade, as ideias mais palhaças… não acho que isso seja motivo forte pra abrir a boca! Não consigo evitar rir, vão me dizer; aceito essa explicação absurda, mas, então, que seja um riso triste. Riam, mas chorem junto. Se não der pra chorar pelos olhos, chorem pela boca. Se isso ainda não rolar, mijem; mas aviso que um líquido qualquer é preciso aqui pra aliviar a secura que o riso, com os traços rasgados pra trás, carrega nos lados dele. Quanto a mim, não vou me deixar abalar pelos cacarejos engraçados e os mugidos doidos de quem sempre acha algo pra reclamar num jeito que não é igual ao deles, porque é uma das modificações danadas da cabeça que Deus, sem sair dum tipo básico, criou pra mandar nas estruturas de osso.

Até hoje, a poesia pegou um caminho errado; subindo até o céu ou rastejando até o chão, ela não sacou os princípios da existência dela e foi, com razão, zoada sem parar pelas pessoas direitas. Não foi modesta… qualidade mais foda que devia existir num ser imperfeito! Eu quero mostrar minhas qualidades; mas não sou falso o bastante pra esconder meus defeitos! O riso, o mal, o orgulho, a loucura vão aparecer, um por vez, entre a sensibilidade e o amor pela justiça, e vão servir de exemplo pro espanto humano: cada um vai se ver neles, não como devia ser, mas como é. E talvez esse ideal simples, bolado pela minha imaginação, passe, mesmo assim, tudo que a poesia achou até agora de mais foda e sagrado. Porque, se eu deixo meus defeitos vazarem nessas páginas, vão acreditar ainda mais nas virtudes que eu faço brilhar nelas, e cuja auréola eu vou botar tão alto, que os maiores gênios do futuro vão me agradecer de coração. Então, beleza, a falsidade vai ser expulsa direto da minha casa. Vai ter, nos meus cantos, uma prova foda de poder, por desprezar assim as opiniões prontas. Ele canta pra ele mesmo, e não pros iguais dele. Não bota a medida da inspiração dele na balança dos caras. Livre que nem tempestade, veio um dia encalhar nas praias brabas da vontade terrível dele! Não tem medo de nada, só dele mesmo! Nas brigas sobrenaturais dele, vai atacar o homem e o Criador com vantagem, que nem quando o peixe-espada enfia a espada na barriga da baleia: que seja amaldiçoado, pelos filhos dele e pela minha mão magrela, quem teima em não sacar os cangurus brabos do riso e os piolhos ousados da caricatura!...

Duas torres danadas dava pra ver no vale; eu disse isso no começo. Multiplicando elas por dois, o resultado era quatro… mas eu não saquei muito bem pra que servia essa conta de matemática. Continuei meu caminho, com febre na cara, e gritava sem parar:

«Não… não… não saquei muito bem pra que servia essa conta de matemática!»

Tinha ouvido uns estalos de correntes e uns gemidos doídos. Que ninguém ache possível, passando por esse lugar, multiplicar as torres por dois, pra dar quatro no final! Uns suspeitam que eu amo a humanidade que nem se eu fosse a mãe dela, e tivesse carregado ela, por nove meses, nas minhas entranhas cheirosas; por isso, eu não passo mais pelo vale onde sobem as duas unidades do multiplicando!

Estrofe 3

Uma forca tava levantada no chão; a um metro dele, pendia pelos cabelos um cara, com os braços amarrados pra trás. As pernas dele tavam soltas, pra piorar os tormentos e fazer ele querer ainda mais qualquer coisa que não fosse o aperto dos braços. A pele da testa tava tão esticada pelo peso da pendura que a cara dele, ferrada pela situação a não ter mais a expressão normal, parecia a pedra dura duma estalactite. Há três dias ele aguentava esse castigo. Ele gritava:

«Quem vai desamarrar meus braços? Quem vai soltar meus cabelos? Tô me quebrando todo em movimentos que só arrancam mais a raiz dos cabelos da minha cabeça; a sede e a fome não são os motivos principais que me ferram o sono. Não tem como minha vida esticar além do limite duma hora. Alguém pra cortar minha garganta com uma pedra afiada!»

Cada palavra vinha antes e depois de uns berros brabos. Eu pulei do mato onde tava escondido e fui pro lado do boneco ou pedaço de toucinho pendurado no teto. Mas olha só, do outro lado, chegaram dançando duas minas bêbadas. Uma segurava um saco e dois chicotes com cordas de chumbo, a outra, um barril cheio de piche e dois pincéis. Os cabelos grisalhos da mais véia voavam no vento, que nem pedaços duma vela rasgada, e os tornozelos da outra batiam um no outro, que nem rabo de atum na popa dum navio. Os olhos delas brilhavam com uma chama tão preta e tão forte que, de cara, eu não achei que essas duas minas fossem da minha espécie. Elas riam com uma segurança tão egoísta, e os traços delas davam tanto nojo, que eu não duvidei nem um segundo que eu não tinha na minha frente os dois exemplos mais nojentos da raça humana. Voltei a me esconder atrás do mato e fiquei quietão, que nem o acantophorus serraticornis, que só bota a cabeça pra fora do ninho.

Elas vinham rápido que nem maré; colando o ouvido no chão, o som, bem claro, me trazia o barulho lírico da marcha delas. Quando as duas fêmeas de orangotango chegaram debaixo da forca, elas cheiraram o ar por uns segundos; mostraram, pelos gestos sangrentos delas, a quantidade danada de choque que veio da experiência delas, quando sacaram que nada tinha mudado ali: o fim com a morte, como elas queriam, não tinha rolado. Não se deram ao trabalho de levantar a cabeça pra ver se a mortadela ainda tava no mesmo lugar. Uma disse:

«Dá pra acreditar que tu ainda tá respirando? Tu tem a vida dura, meu marido querido.»

Que nem dois cantores numa catedral, que cantam um verso do salmo um depois do outro, a segunda respondeu:

«Então tu não quer morrer, ó meu filho lindo? Me diz como tu fez (com certeza foi algum feitiço) pra assustar os urubus? De verdade, tua carcaça ficou tão magrela! O ventinho balança ela que nem lanterna.»

Cada uma pegou um pincel e besuntou o corpo do pendurado com piche… cada uma pegou um chicote e levantou os braços… Eu ficava bobo (não tinha como não ficar igual) com a precisão braba que as lâminas de metal, em vez de só raspar por cima, que nem quando a gente briga com um negro e faz força à toa, tipo pesadelo, pra agarrar ele pelo cabelo, entravam, por causa do piche, até dentro das carnes, marcadas por sulcos tão fundos quanto os ossos deixavam razoavelmente rolar. Me segurei pra não curtir esse rolé doido demais, mas menos engraçado do que eu podia esperar. E mesmo assim, apesar das boas intenções que eu tinha antes, como não sacar a força dessas minas, os músculos dos braços delas? O jeito delas, que era bater nas partes mais sensíveis, tipo a cara e a barriga de baixo, só vai ser falado por mim se eu quiser bancar o cara que conta toda a verdade! A menos que, juntando meus lábios um no outro, mais na horizontal (mas todo mundo sabe que é o jeito mais comum de fazer essa pressão), eu prefira ficar calado, cheio de lágrimas e mistérios, que o sofrimento pra mostrar isso não vai conseguir esconder, não só tão bem, mas até melhor que minhas palavras (porque eu não acho que tô errado, mesmo que não dê pra negar de cara, sem ferrar as regras básicas do jeitinho, as chances de eu meter o pé na jaca), os resultados ferrados que vêm da raiva que bota pra funcionar os metacarpos secos e as juntas fortes: mesmo que a gente não se bote no lugar do observador sem lado e do moralista calejado (é quase foda o bastante eu saber que não engulo, pelo menos inteiro, essa restrição mais ou menos sacana), a dúvida, nisso, não ia ter como fincar raiz; porque eu não boto ela, por agora, nas mãos duma força sobrenatural, e ia morrer na certa, talvez não de uma vez, por falta duma seiva que junte ao mesmo tempo comida e nada de veneno.

Tá combinado, senão não me leiam, que eu só boto em cena o jeitinho tímido da minha opinião: mas nem me passa pela cabeça largar os direitos que ninguém pode tirar! Claro, não quero brigar com essa afirmação, que brilha com o critério da certeza, de que tem um jeito mais simples de se entender; seria, eu explico com poucas palavras só, mas que valem mais que mil, não discutir: é mais duro de fazer do que o povão geralmente acha. Discutir é a palavra da gramática, e um monte de gente vai achar que não dá pra ir contra, sem um calhamaço de provas, o que eu acabei de botar no papel; mas a parada muda bastante se a gente deixar o instinto sacar que ele usa uma esperteza rara pra cuidar do seu cuidado, quando bota uns julgamentos que, se não fosse assim, iam parecer, acreditem, duma ousadia que chega perto da fanfarronice.

Pra fechar esse incidente pequeno, que se livrou da casca dele por uma leveza tão ferrada quanto cheia de interesse (o que ninguém deixou de sacar, desde que tenha fuçado as memórias mais frescas), é bom, se a gente tem as faculdades direitinhas, ou melhor, se a balança da burrice não pesa muito mais no prato onde tão os atributos foda e chiques da razão, ou seja, pra ser mais claro (porque até agora eu fui só curto, o que mesmo uns não vão engolir, por causa das minhas esticadas, que são só coisa da cabeça, já que elas cumprem o trampo de caçar, com o bisturi da análise, as aparições rapidinhas da verdade até os últimos cantos delas), se a inteligência mandar mais que os defeitos que o costume, a natureza e o aprendizado sufocaram em parte, é bom, repito pela segunda e última vez, porque de tanto repetir, a gente ia acabar, na maioria das vezes não é mentira, não se entendendo mais, voltar com o rabo entre as pernas (se é que eu tenho rabo) pro tema dramático grudado nessa estrofe.

É útil tomar um copo d’água antes de encarar o resto do meu trampo. Prefiro tomar dois, do que ficar sem nenhum. Tipo numa caçada contra um negro fugido, pela floresta, num momento combinado, cada cara do grupo pendura o fuzil nas cipós, e a gente se junta de boa, na sombra dum matagal, pra matar a sede e a fome. Mas a parada dura só uns segundos, a caça volta com raiva e o grito final não demora a ecoar. E, igual o oxigênio dá pra sacar pela propriedade que ele tem, sem se achar, de reacender um fósforo com uns pontos pegando fogo, assim dá pra sacar que eu fiz meu dever pelo jeito que eu corro pra voltar pro assunto.

Quando as fêmeas viram que não dava pra segurar o chicote, que o cansaço deixou cair das mãos delas, elas pararam, com jeitinho, o trampo de ginástica que tinham encarado por quase duas horas, e se mandaram, com uma alegria que não deixava de ter umas ameaças pro futuro. Fui pro lado daquele que me pedia socorro, com um olhar frio (porque a perda de sangue era tão grande que a fraqueza não deixava ele falar, e minha ideia, mesmo eu não sendo médico, era que o sangramento tinha pegado na cara e na barriga de baixo), e cortei os cabelos dele com uma tesoura, depois de soltar os braços dele. Ele me contou que a mãe dele chamou ele, uma noite, pro quarto dela e mandou ele tirar a roupa, pra passar a noite com ela numa cama, e que, sem esperar resposta, a maternidade tirou toda a roupa dela, fazendo na frente dele os gestos mais safados. Que aí ele se mandou. Fora isso, pelas negativas dele sem parar, ele chamou a raiva da mulher dele, que tinha se iludido com a esperança duma recompensa, se conseguisse fazer o marido ceder o corpo dele pras paixões da véia. Elas bolaram, num plano, pendurar ele numa forca, armada antes, num canto que ninguém ia, e deixar ele morrer aos poucos, jogado pra todas as misérias e perigos. Não foi sem um monte de reflexões bem pensadas e cheias de tretas quase impossíveis, que elas chegaram a escolher o castigo chique que só acabou por causa do socorro que eu dei sem ninguém esperar. As marcas mais fortes de gratidão tavam em cada fala, e não tiravam o menor valor das confidências dele.

Carreguei ele pra cabana mais perto; porque ele tinha acabado de desmaiar, e não larguei os lavradores até dar minha bolsa pra eles cuidarem do ferido, e até fazer eles prometerem que iam dar pro coitado, que nem pro filho deles, as provas duma simpatia teimosa. Na minha vez, contei pra eles o que rolou e fui pra porta pra pegar o trilho de novo; mas olha só, depois de andar uns cem metros, voltei sem pensar nos meus passos, entrei de novo na cabana e, falando pros donos simples dela, gritei:

«Não, não… não pensem que isso me espanta!»

Dessa vez, me mandei de vez; mas a sola dos pés não pisava firme: outro podia nem ter sacado! O lobo não passa mais debaixo da forca que levantaram, num dia de primavera, as mãos juntas duma esposa e duma mãe, tipo quando ele fazia a imaginação encantada dele pegar o caminho duma comida falsa. Quando vê, no horizonte, essa cabeleira preta, balançada pelo vento, ele não anima a força parada dele, e foge com uma velocidade doida! Será que dá pra ver, nesse lance da cabeça, uma inteligência maior que o instinto comum dos mamíferos? Sem garantir nada e nem prever nada, me parece que o bicho sacou o que é crime! Como ele não ia sacar, quando uns seres humanos, eles mesmos, jogaram fora, até esse ponto que não dá pra explicar, o comando da razão, pra deixar ficar, no lugar dessa rainha derrubada, só uma vingança braba!


Estrofe 4

Tô sujo. Os piolhos tão me comendo. Os porcos, quando me olham, vomitam. As crostas e as feridas da lepra descamaram minha pele, cheia de pus amarelo. Não conheço a água dos rios, nem o orvalho das nuvens. Na minha nuca, que nem num monte de esterco, cresce um cogumelo danado, com hastes tipo guarda-chuva. Sentado num treco sem forma, não mexi os braços e pernas há quatro séculos. Meus pés criaram raiz no chão e formam, até minha barriga, uma espécie de vegetação viva, cheia de parasitas nojentos, que ainda não vem da planta e já não é carne. Mesmo assim, meu coração bate. Mas como ele ia bater, se a podridão e os cheiros do meu cadáver (não ouso dizer corpo) não dessem comida pra ele pra caramba? Debaixo da minha axila esquerda, uma família de sapos fez morada, e, quando um deles mexe, me faz cócegas. Cuidado pra um não escapar e vir raspar, com a boca, o dentro da tua orelha: ele ia ser capaz de entrar no teu cérebro. Debaixo da minha axila direita, tem um camaleão que caça eles sem parar, pra não morrer de fome: cada um tem que viver. Mas, quando um lado ferra com os truques do outro, eles não acham nada melhor que não se segurarem e chupam a gordura fininha que cobre minhas costelas: já me acostumei.

Uma cobra sacana comeu meu pau e tomou o lugar dele: essa nojenta me fez eunuco. Ô! Se eu pudesse ter me defendido com meus braços paralisados; mas acho mais que eles viraram toras. De qualquer jeito, o que importa é sacar que o sangue não vem mais passear aí com a cor vermelha dele. Dois ouriços pequenos, que não crescem mais, jogaram pra um cachorro, que não recusou, o dentro dos meus bagos: a pele, bem lavada, eles se enfiaram dentro. O cu foi pego por um caranguejo; animado pela minha parada, ele guarda a entrada com as pinças e me machuca pra caramba! Duas águas-vivas cruzaram os mares, logo atraídas por uma esperança que não foi enganada. Elas olharam com atenção as duas partes carnudas que formam a bunda humana e, agarrando no formato redondo delas, esmagaram elas tanto com uma pressão constante que os dois pedaços de carne sumiram, enquanto ficaram dois monstros, saídos do reino da meleca, iguais na cor, no formato e na ferocidade.

Não falem da minha coluna, porque ela é uma espada. Sim, sim… eu não tava prestando atenção… teu pedido é justo. Tu quer saber, né, como ela tá cravada de pé nos meus rins? Eu mesmo não lembro muito bem; mas, se eu resolver tomar por memória o que talvez seja só um sonho, saibam que o homem, quando soube que eu tinha jurado viver com a doença e a parada até vencer o Criador, andou atrás de mim na ponta dos pés, mas não tão quieto que eu não ouvisse. Não senti mais nada, por um instante que não foi longo. Essa faca afiada enfiou-se, até o cabo, entre as omoplatas do touro das festas, e os ossos dele tremeram, que nem terremoto. A lâmina gruda tão forte no corpo que ninguém, até agora, conseguiu tirar ela. Atletas, mecânicos, filósofos, médicos tentaram, um por vez, os jeitos mais diferentes. Eles não sabiam que o mal que o homem fez não dá mais pra desfazer! Perdoei o fundo da ignorância nata deles e saudei eles com as pálpebras dos meus olhos.

Viajante, quando tu passar perto de mim, não me digas, eu te peço, nem uma palavra de consolo: tu ia ferrar meu coragem. Deixa eu esquentar minha teimosia na chama do martírio que eu quis. Vaza… que eu não te dê pena nenhuma. O ódio é mais doido do que tu acha; o jeito dele é um mistério, que nem a aparência quebrada dum bastão enfiado na água. Do jeito que tu me vê, eu ainda posso dar uns rolés até as muralhas do céu, na frente duma legião de assassinos, e voltar pra pegar essa pose, pra pensar, de novo, nos planos foda da vingança. Tchau, não vou te atrasar mais; e, pra te ensinar e te proteger, pensa no destino brabo que me levou pra revolta, quando talvez eu tenha nascido bom!

Tu vai contar pro teu filho o que tu viu; e, pegando ele pela mão, faz ele curtir a beleza das estrelas e as maravilhas do universo, o ninho do pisco e os templos do Senhor. Tu vai ficar bobo de ver ele tão na dele com os conselhos de pai, e vai recompensar ele com um sorriso. Mas, quando ele sacar que ninguém tá vendo, olha pra ele, e tu vai ver ele cuspir a baba dele na virtude; ele te enganou, esse que veio da raça humana, mas não vai te enganar mais: tu vai saber, de agora em diante, o que ele vai virar. Ó pai coitado, prepara, pra acompanhar os passos da tua velhice, o cadafalso que não apaga, que vai cortar a cabeça dum criminoso precoce, e a dor que vai te mostrar o caminho que leva pra cova.


Estrofe 5

Na parede do meu quarto, que sombra desenha, com uma força doida, a projeção fantasmagórica da sua silhueta enrugada? Quando eu coloco no peito essa pergunta louca e calada, é menos pela grandeza da forma que pelo retrato da real que o estilo simples se comporta assim. Seja quem tu for, te defende; porque eu vou jogar contra ti a funda duma acusação braba: esses olhos não são teus… onde tu pegou eles? Um dia, vi passar na minha frente uma mina loura; ela tinha uns iguais aos teus: tu arrancou eles dela. Tô vendo que tu quer fazer acreditar na tua beleza; mas ninguém cai nessa; e eu, menos que qualquer um. Te digo isso pra tu não me tomar por trouxa. Um monte de aves de rapina, loucas por carne dos outros e defensoras da utilidade da caçada, bonitas que nem esqueletos desfolhando espigas do Arkansas, voam em volta da tua testa, que nem servos obedientes e aceitos. Mas isso é uma testa? Não é fácil botar muita fé nisso. É tão baixa que não dá pra checar as provas, poucas pra caramba, da existência esquisita dela. Não tô falando isso pra me divertir. Talvez tu nem tenha testa, tu que passeia na parede, que nem um símbolo mal pensado duma dança doida, o balançar febrento das tuas vértebras da cintura.

Quem, então, te escalpelou? Se foi um cara, porque tu trancou ele, por vinte anos, numa prisão, e ele fugiu pra preparar uma vingança à altura das represálias dele, ele fez o que tinha que fazer, e eu bato palma; só que tem um porém, ele não foi duro o bastante. Agora, tu parece um Pele-Vermelha preso, pelo menos (vamos anotar antes) pela falta danada de cabelo. Não que ele não possa crescer de novo, já que os fisiologistas descobriram que até cérebros tirados voltam com o tempo nos bichos; mas meu pensamento, parando numa sacada simples, que não deixa de ter, pelo pouco que eu vejo, uma curtição danada, não vai, nem nas ideias mais ousadas, até o limite de desejar tua cura, e fica, ao contrário, baseado, com a neutralidade mais que suspeita dele, em olhar (ou pelo menos querer), como o sinal de desgraças maiores, o que pra ti é só uma perda por agora da pele que cobre o topo da tua cabeça. Espero que tu tenha me entendido.

E mesmo que o acaso te deixasse, por um milagre doido, mas às vezes razoável, recuperar essa pele foda que a vigilância religiosa do teu inimigo guardou, que nem a memória louca da vitória dele, é quase muito possível que, mesmo que a gente não tivesse fuçado a lei das probabilidades só pela matemática (e todo mundo sabe que a analogia leva fácil essa lei pra outros cantos da inteligência), teu medo justo, mas meio exagerado, duma friagem parcial ou total, não ia recusar a chance foda, e até única, que apareceria dum jeito tão na hora, mesmo sendo de repente, de proteger as várias partes do teu cérebro do toque do ar, principalmente no inverno, com um cabelo que, com toda razão, é teu, porque é natural, e que tu podia, fora isso (não dá pra entender tu negar), manter sempre na cabeça, sem correr os riscos, sempre chatos, de ferrar as regras mais simples do básico dum jeito decente.

Não é verdade que tu me escuta com atenção? Se tu escutar mais, tua tristeza não vai se soltar de dentro das tuas narinas vermelhas. Mas, como eu sou bem sem lado, e não te odeio tanto quanto eu devia (se eu tiver errado, me fala), tu presta, mesmo sem querer, o ouvido pros meus papos, que nem empurrado por uma força maior. Não sou tão ruim quanto tu: por isso teu gênio se curva sozinho pro meu… De verdade, não sou tão ruim quanto tu! Tu acabou de dar uma olhada na cidade montada no lado dessa montanha. E agora, o que eu vejo?... Todo mundo tá morto! Tenho orgulho que nem qualquer um, e é mais um defeito, talvez, ter ele de sobra. Beleza, escuta… escuta, se a confissão dum cara, que lembra ter vivido meio século como tubarão nas correntes debaixo d’água nas costas da África, te pega o bastante pra tu dar atenção, senão com amargura, pelo menos sem o erro brabo de mostrar o nojo que eu te causo.

Não vou jogar nos teus pés a máscara da virtude, pra parecer pros teus olhos como eu sou; porque eu nunca usei ela (se é que isso é desculpa); e, desde os primeiros instantes, se tu olhar meus traços com atenção, tu vai me sacar como teu discípulo respeitoso na sacanagem, mas não como teu rival brabo. Já que eu não brigo contigo pela coroa do mal, não acho que outro faça isso: ele ia ter que se igualar a mim antes, o que não é mole… Escuta, a não ser que tu seja a condensação fraca dum nevoeiro (tu esconde teu corpo em algum canto, e eu não acho ele): uma manhã, eu vi uma menininha que se inclinava num lago, pra pegar um lótus rosa; ela firmou os passos, com um jeito precoce; se inclinava pras águas, quando os olhos dela cruzaram meu olhar (verdade que, do meu lado, não foi sem querer). Na hora, ela cambaleou que nem redemoinho que a maré faz em volta duma pedra, as pernas dela dobraram, e, coisa foda de ver, um lance que rolou com tanta verdade quanto eu falo contigo, ela caiu até o fundo do lago: resultado esquisito, não pegou mais nenhuma ninfeácea. O que ela tá fazendo lá embaixo?... Não fui atrás de saber. Com certeza, a vontade dela, que se alinhou na bandeira da libertação, tá brigando forte contra a podridão!

Mas tu, ó meu mestre, debaixo do teu olhar, os moradores das cidades são ferrados de repente, que nem formigueiro esmagado pelo calcanhar do elefante. Não acabei de ver um exemplo foda disso? Olha… a montanha não tá mais alegre… fica isolada que nem um véio. É verdade, as casas tão aí; mas não é doido dizer, baixinho, que tu não podia dizer o mesmo de quem não tá mais nelas. Já os cheiros dos defuntos chegam até mim. Tu não sente eles? Olha essas aves de rapina, que esperam a gente se mandar pra começar esse banquete gigante; vem uma nuvem sem fim dos quatro cantos do horizonte. Ai! Elas já tinham vindo, porque eu vi as asas predadoras delas desenhando, em cima de ti, o monumento das espirais, que nem pra te cutucar a apressar o crime. Teu nariz não pega nem um cheirinho? O impostor não é outra coisa… Teus nervos do nariz finalmente tremem com o cheiro de uns átomos fedidos: esses sobem da cidade ferrada, mesmo que eu não precise te contar isso…

Queria beijar teus pés, mas meus braços só envolvem um vapor transparente. Vamos caçar esse corpo que não acho, mesmo que meus olhos vejam ele: ele merece, da minha parte, um monte de marcas duma admiração de verdade. O fantasma zoa comigo: me ajuda a procurar o corpo dele mesmo. Se eu faço sinal pra ele ficar no lugar dele, olha só, ele me devolve o mesmo sinal… O segredo foi sacado; mas não é, digo de boa, pra minha maior alegria. Tudo tá explicado, os grandes e os menores detalhes; esses menores não importam pra lembrar, tipo o arrancar dos olhos da mina loura: isso é quase nada!... Eu não lembrava então que eu também tinha sido escalpelado, mesmo que fosse só por cinco anos (o tempo exato me escapou) que eu tranquei um cara numa prisão, pra ver o show dos sofrimentos dele, porque ele me negou, com razão, uma amizade que não rola pra uns como eu? Já que eu finjo não saber que meu olhar pode matar, até os planetas que giram no espaço, não vai tá errado quem disser que eu não tenho a parada das memórias. O que me resta fazer é quebrar esse gelo, em pedaços, com uma pedra… Não é a primeira vez que o pesadelo da perda rapidinha da memória bota casa na minha imaginação, quando, pelas leis duras da óptica, eu acabo ficando na frente do desconhecimento da minha própria cara!


Estrofe 6

Eu tinha pegado no sono na falésia. Quem correu atrás duma avestruz pelo deserto, um dia inteiro, sem pegar ela, não teve tempo de comer nem de fechar os olhos. Se for esse cara que tá me lendo, ele pode, no máximo, sacar que sono pesado caiu em cima de mim. Mas, quando a tempestade empurrou um navio pra fundo do mar, com a palma da mão dela; se, na jangada, de toda a tripulação só sobra um cara, quebrado pelas canseiras e faltas de tudo; se a onda balança ele, que nem destroço, por horas mais longas que a vida dum homem; e se um navio, que depois corta esses cantos de desgraça com a quilha rachada, vê o coitado que passeia pelo mar a carcaça magrela dele e dá um socorro que quase veio tarde, acho que esse náufrago vai sacar ainda melhor o grau que meu torpor pegou nos sentidos. O magnetismo e o clorofórmio, quando se dão o trabalho, sabem às vezes fazer uns apagões letárgicos parecidos. Não tem nada a ver com a morte: seria uma baita mentira falar isso.

Mas vamos logo pro sonho, pra que os impacientes, loucos por esse tipo de leitura, não comecem a rugir, que nem um bando de cachalotes cabeçudos brigando entre si por uma fêmea prenha. Sonhei que eu tinha entrado no corpo dum porco, que não era fácil sair dele, e que eu rolava meus pelos nos pântanos mais barrentos. Era tipo uma recompensa? Coisa dos meus desejos, eu não fazia mais parte da humanidade! Pra mim, entendi assim, e senti uma alegria mais que braba. Mesmo assim, eu fuçava com força que ato de virtude eu tinha feito pra merecer, da Providência, esse favor danado.

Agora que repassei na memória as várias fases desse achatamento medonho contra a barriga do granito, que a maré, sem eu perceber, passou duas vezes por cima dessa mistura braba de matéria morta e carne viva, talvez não seja inútil dizer que essa baixaria era, provavelmente, só uma punição, feita em mim pela justiça divina. Mas quem conhece os desejos escondidos ou o motivo das alegrias fedidas? A transformação nunca me pareceu nada além do eco alto e foda duma felicidade perfeita, que eu esperava há um tempão. Tinha chegado, enfim, o dia que eu era um porco! Testava meus dentes na casca das árvores; meu focinho, eu olhava pra ele com um prazer danado. Não sobrava nem um pedacinho de divindade: eu soube levantar minha alma até a altura louca dessa curtição que não dá pra explicar.

Me escutem, então, e não fiquem com vergonha, caricaturas sem fim do bonito, que levam a sério o zurro engraçado da alma de vocês, totalmente desprezível; e que não sacam por que o Todo-Poderoso, num momento raro de palhaçada foda, que, com certeza, não passa das leis gerais do grotesco, resolveu, um dia, ter o prazer doido de botar num planeta uns bichos esquisitos e minúsculos, chamados humanos, que a matéria parece com a do coral vermelho. Claro, vocês têm razão de ficar vermelhos, ossos e gordura, mas me escutem. Não chamo a inteligência de vocês; vocês iam fazer ela cuspir sangue pelo nojo que ela mostra pra vocês: esqueçam ela e sejam coerentes com vocês mesmos…

Ali, nada de aperto. Quando eu queria matar, matava; isso, aliás, rolava direto, e ninguém me parava. As leis dos caras ainda vinham atrás de mim com vingança, mesmo eu não atacando a raça que eu larguei tão de boa; mas minha consciência não me botava pra baixo. De dia, eu brigava com meus novos iguais, e o chão ficava cheio de camadas de sangue seco. Eu era o mais forte e levava todas as vitórias. Umas feridas ardidas cobriam meu corpo; eu fingia que nem via. Os bichos da terra se mandavam de mim, e eu ficava só na minha grandeza brilhante.

Qual não foi meu choque quando, depois de cruzar um rio a nado, pra me afastar das terras que minha raiva tinha esvaziado e chegar em outros cantos pra plantar meus costumes de morte e carnificina, tentei andar nessa margem cheia de flores. Meus pés tavam paralisados; nenhum movimento mostrava a verdade dessa parada forçada. No meio duns esforços doidos pra seguir meu caminho, foi aí que eu acordei e senti que voltava a ser homem. A Providência me fazia sacar, dum jeito que não é um mistério, que ela não queria que, nem em sonho, meus planos foda se realizassem. Voltar pro meu jeito antigo foi uma dor tão braba pra mim que, nas noites, eu ainda choro por isso. Meus lençóis tão sempre molhados, que nem se tivessem sido jogados na água, e, todo dia, eu mando trocar eles. Se vocês não acreditam, venham me ver; vão checar, com os próprios olhos, não só a chance, mas a verdade mesmo do que eu digo.

Quantas vezes, desde essa noite passada ao relento, numa falésia, eu não me misturei com bandos de porcos, pra pegar de volta, que nem direito, minha transformação destruída! Tá na hora de largar essas memórias foda, que só deixam, depois do rolé delas, a via láctea pálida dos arrependimentos eternos.

Estrofe 7

Não é impossível ver um desvio esquisito no jeito escondido ou aberto das leis da natureza. De verdade, se cada um se der o trabalho esperto de fuçar as várias fases da vida dele (sem pular nenhuma, porque pode ser justo essa que ia dar a prova do que eu tô dizendo), ele não vai lembrar, sem um certo espanto, que seria engraçado noutras paradas, que, num certo dia, pra falar primeiro das coisas que a gente vê, ele viu um lance que parecia passar, e passava mesmo, das ideias conhecidas que a observação e a experiência dão, tipo, por exemplo, as chuvas de sapo, que o show mágico delas não deve ter sido sacado de cara pelos cientistas. E que, noutro dia, pra falar em segundo e último lugar das coisas de dentro, a alma dele mostrou pro olhar curioso da psicologia, não vou dizer uma doideira da razão (que, mesmo assim, não ia ser menos doida; pelo contrário, ia ser mais), mas, pelo menos, pra não ficar de frescura com uns caras frios, que nunca me perdoariam os devaneios escancarados da minha exagerada, um estado esquisito, muitas vezes bem brabo, que marca que o limite que o bom senso dá pra imaginação é às vezes, mesmo com o acordo rapidinho feito entre essas duas forças, ferrado pela pressão forte da vontade, mas, na maioria das vezes também, por ela não ajudar de verdade: vamos dar uns exemplos pra apoiar, que não é difícil sacar o quanto eles vêm a calhar; desde que a gente leve junto uma moderação esperta. Dou dois: os ataques de raiva e as doenças do orgulho.

Aviso quem me lê pra tomar cuidado pra não fazer uma ideia vaga, e, pior ainda, errada, das belezas literárias que eu desfolho no desenrolar rápido pra caramba das minhas frases. Ai! Eu queria desenrolar meus raciocínios e comparações devagar e com um monte de grandiosidade (mas quem manda no tempo?), pra cada um entender mais, se não meu pavor, pelo menos meu choque, quando, numa noite de verão, enquanto o sol parecia baixar no horizonte, eu vi nadar no mar, com patas largas de pato no lugar das pontas das pernas e dos braços, carregando uma barbatana nas costas, tão longa e afiada quanto a dos golfinhos, um ser humano de músculos fortes, seguido por um monte de bancos de peixes (vi nesse rolé, entre outros bichos das águas, o torpedo, o anarnak groenlandês e o escorpião-horrível) com sinais bem escancarados da maior admiração.

Às vezes ele mergulhava, e o corpo viscoso dele aparecia logo depois, a duzentos metros dali. Os botos, que, na minha opinião, não roubaram a fama de bons nadadores, mal davam conta de seguir de longe esse anfíbio de tipo novo. Não acho que o leitor vá se arrepender, se ele der pro meu papo, menos o estorvo chato duma credulidade burra, que o baita serviço duma confiança funda, que discute direitinho, com uma simpatia secreta, os mistérios poéticos, poucos demais, na opinião dele mesmo, que eu me encarrego de mostrar, sempre que a chance aparece, como ela apareceu hoje do nada, cheia dos cheiros fortes das plantas aquáticas, que a brisa fresquinha traz pra essa estrofe, que tem um monstro, que pegou pra si os sinais próprios da família dos palmípedes.

Quem tá falando aqui de pegar pra si? Que fique bem claro que o homem, pelo jeito múltiplo e complicado dele, não ignora os jeitos de abrir ainda mais os limites; vive na água, que nem cavalo-marinho; pelas camadas de cima do ar, que nem águia-pescadora; e debaixo da terra, que nem toupeira, tatuzinho e a grandiosidade da minhoca. É assim, no jeito dele, mais ou menos curto (mas mais que menos), o critério exato da consolação bem forte que eu tentava fazer nascer na minha cabeça, quando pensava que o ser humano que eu via de longe nadando com os quatro braços e pernas na superfície das ondas, como nunca o corvo-marinho mais foda fez, talvez tivesse pegado a mudança nova das pontas dos braços e pernas só como o castigo pesado de algum crime que ninguém sabe.

Não precisava eu ficar quebrando a cabeça pra fabricar antes as pílulas tristes da pena; porque eu não sabia que esse cara, que batia os braços na onda amarga um depois do outro, enquanto as pernas, com uma força igual às presas em espiral do narval, faziam as camadas d’água recuarem, não tinha escolhido essas formas doidas mais por vontade do que elas tinham sido botadas nele como castigo. Pelo que eu soube depois, aqui vai a verdade simples: o tempo esticado nessa parada líquida tinha trazido aos poucos, no cara que se mandou dos continentes duros, as mudanças grandes, mas não essenciais, que eu tinha notado, no bagulho que um olhar meio confuso me fez tomar, desde os primeiros momentos que ele apareceu (por uma leveza que não dá pra explicar, que os erros geram o sentimento tão chato que os psicólogos e os caras da prudência sacam fácil), por um peixe de forma estranha, ainda não descrito nas listas dos naturalistas; mas talvez nos trabalhos deles depois da morte, mesmo que eu não tivesse a pretensão desculpável de cair pra esse último palpite, bolado em condições muito hipotéticas.

De verdade, esse anfíbio (porque anfíbio tem aí, sem dar pra dizer o contrário) só era visível pra mim, tirando os peixes e os cetáceos; porque eu percebi que uns camponeses, que pararam pra olhar minha cara, bagunçada por esse lance sobrenatural, e que tentavam à toa explicar por que meus olhos tavam sempre grudados, com uma teimosia que parecia imbatível, mas que na real não era, num ponto do mar onde eles só viam uma quantidade razoável e limitada de bancos de peixes de todo tipo, abriam a boca grandiosa deles, talvez tanto quanto uma baleia.

«Isso fazia eles rirem, mas não, que nem eu, ficarem pálidos, diziam eles na linguagem pitoresca deles; e não eram tão burros pra não sacar que, justamente, eu não tava olhando os rolés dos peixes no mar, mas que minha vista ia muito mais pra frente.»

De um jeito que, pra mim, virando os olhos sem querer pro lado da envergadura foda dessas bocas poderosas, eu dizia pra mim mesmo que, a menos que a gente achasse no universo todo um pelicano grande que nem montanha, ou pelo menos que nem um promontório (curtam, por favor, a finesse da restrição que não perde um pedacinho de chão), nenhum bico de ave de rapina ou mandíbula de bicho selvagem ia nunca conseguir passar, nem igualar, cada um desses buracos abertos, mas tristes demais. E mesmo assim, embora eu guarde uma boa parte pro uso legal da metáfora (essa figura de retórica ajuda muito mais as vontades humanas pro infinito do que os caras cheios de preconceitos ou ideias erradas, que é a mesma coisa, costumam imaginar), não deixa de ser verdade que a boca engraçada desses camponeses ainda é larga o bastante pra engolir três cachalotes. Vamos encurtar ainda mais nosso pensamento, ficar sérios, e nos contentar com três elefantinhos que acabaram de nascer.

Com uma braçada só, o anfíbio deixava atrás dele um quilómetro de rastro espumoso. No momento curtíssimo que o braço esticado pra frente fica no ar, antes de afundar de novo, os dedos abertos dele, juntos por uma dobra de pele tipo membrana, pareciam se jogar pras alturas do espaço e pegar as estrelas. De pé na pedra, usei as mãos que nem megafone e gritei, enquanto os caranguejos e lagostas fugiam pras trevas das fendas mais escondidas:

«Ó tu, que nada mais que o voo das asas longas da fragata, se tu ainda entende o significado dos gritos altos que, como tradução fiel do pensamento fundo dele, a humanidade solta com força, para um instantinho na tua marcha rápida e me conta, rapidão, as fases da tua história de verdade. Mas te aviso que não precisa falar comigo, se teu plano ousado é fazer nascer em mim a amizade e o respeito que eu senti por ti desde que te vi, pela primeira vez, fazendo, com a graça e a força do tubarão, teu rolé reto e indomável.»

Um suspiro, que gelou meus ossos e fez a pedra onde eu apoiava os pés tremer (a menos que fosse eu mesmo tremendo, pela força bruta das ondas de som que traziam pro meu ouvido um grito tão desesperado), ecoou até as entranhas da terra: os peixes mergulharam debaixo das ondas, com o barulho duma avalanche. O anfíbio não ousou chegar muito perto da margem; mas, assim que teve certeza que a voz dele chegava clara o bastante no meu ouvido, diminuiu o movimento dos braços e pernas de pato, pra segurar o peito dele, coberto de algas, em cima das ondas rugindo. Eu vi ele baixar a testa, como pra chamar, com uma ordem séria, o bando solto das memórias. Não ousei cortar ele nessa parada, santamente arqueológica: afundado no passado, ele parecia um recife. Finalmente, ele falou assim:

«O centopeia não fica sem inimigos; a beleza doida das patas sem fim dele, em vez de trazer simpatia dos bichos, pode ser, pra eles, só o baita motivo duma irritação ciumenta. E eu não ia ficar bobo de saber que esse bicho é alvo dos ódios mais brabos. Vou esconder de ti o lugar onde nasci, que não importa pro meu papo: mas a vergonha que ia cair na minha família importa pro meu dever. Meu pai e minha mãe (que Deus perdoe eles!), depois dum ano esperando, viram o céu atender aos pedidos deles: dois gêmeos, eu e meu irmão, vieram pra luz. Mais motivo pra se amarem. Não rolou assim como eu falo. Porque eu era o mais bonito dos dois, e o mais esperto, meu irmão me tomou ódio, e não se deu o trabalho de esconder o que sentia: por isso, meu pai e minha mãe jogaram em mim a maior parte do amor deles, enquanto eu, com minha amizade de verdade e firme, tentava acalmar uma alma que não tinha direito de se revoltar contra quem saiu da mesma carne. Aí, meu irmão não conheceu mais limite pra raiva dele, e me ferrou no coração dos nossos pais com as mentiras mais doidas. Vivi, por quinze anos, num buraco, com larvas e água suja como única comida. Não vou te contar em detalhe os tormentos brabos que eu aguentei nessa prisão longa e injusta. Às vezes, num momento do dia, um dos três carrascos, por vez, entrava de repente, carregado de alicates, tenazes e uns instrumentos de castigo. Os gritos que as torturas me arrancavam não mexiam com eles; a perda danada do meu sangue fazia eles rirem. Ó meu irmão, te perdoei, tu que foi o primeiro motivo de todos os meus males! Será que uma raiva cega não consegue, enfim, abrir os próprios olhos? Pensei um monte na minha prisão eterna. O que virou meu ódio geral contra a humanidade, tu saca. O enfraquecimento aos poucos, a solidão do corpo e da alma não tinham me feito perder toda a razão ainda, a ponto de guardar mágoa contra quem eu não parei de amar: corrente tripla que eu era escravo. Consegui, com jeitinho, pegar minha liberdade de volta! Enjoado dos caras do continente, que, mesmo se dizendo meus iguais, até então não pareciam nada comigo (se achavam que eu era parecido, por que me ferravam?), corri pros seixos da praia, bem decidido a me matar, se o mar me trouxesse as lembranças passadas duma vida ferrada. Tu vai acreditar nos teus próprios olhos? Desde o dia que eu fugi da casa dos meus pais, não reclamo tanto quanto tu pensa de morar no mar e nas grutas de cristal dele. A Providência, como tu vê, me deu em parte o jeito do cisne. Vivo em paz com os peixes, e eles me arrumam a comida que eu preciso, que nem se eu fosse o rei deles. Vou dar um assobio especial, se isso não te ferrar, e tu vai ver como eles voltam.»

Rolou como ele falou. Ele pegou de novo a natação real dele, cercado pelo bando de súditos. E, mesmo que em poucos segundos ele tivesse sumido dos meus olhos, com uma luneta, eu ainda consegui ver ele, nos últimos limites do horizonte. Nadava com uma mão e, com a outra, enxugava os olhos, que a tensão braba de chegar perto da terra firme tinha deixado vermelhos de sangue. Ele fez isso pra me agradar. Joguei o treco revelador contra o penhasco íngreme; ele quicou de pedra em pedra, e os pedaços soltos foram pegos pelas ondas: foi assim a última prova e o tchau foda com que eu me curvei, que nem num sonho, diante duma inteligência nobre e coitada! Mas tudo era de verdade no que tinha rolado nessa noite de verão.


Estrofe 8

Toda noite, enfiando a envergadura das minhas asas na minha memória morrendo, eu lembrava de Falmer… toda noite. Os cabelos loiros dele, a cara oval, os traços majestosos ainda tavam grudados na minha imaginação… pra sempre… principalmente os cabelos loiros dele. Tirem, tirem essa cabeça sem cabelo, lisa que nem casco de tartaruga. Ele tinha catorze anos, e eu só tinha um ano a mais. Que essa voz triste se cale. Por que ela vem me dedurar? Mas sou eu mesmo que tô falando. Usando minha própria língua pra soltar meu pensamento, eu vejo que meus lábios mexem, e que sou eu mesmo que tô falando. E sou eu mesmo que, contando uma história da minha juventude, e sentindo o remorso entrar no meu peito… sou eu mesmo, a menos que eu tenha me ferrado… sou eu mesmo que tô falando.

Eu só tinha um ano a mais. Quem é esse que eu tô falando então? É um amigo que eu tinha nos tempos passados, acho. Sim, sim, eu já disse como ele se chama… não quero soletrar de novo essas seis letras, não, não. Também não precisa repetir que eu tinha um ano a mais. Quem sabe disso? Vamos repetir, mesmo assim, mas com um murmúrio doído: eu só tinha um ano a mais. Mesmo naquela época, o fato de eu ser mais forte fisicamente era mais um motivo pra ajudar, pelo caminho duro da vida, aquele que tinha se dado pra mim, do que pra ferrar um cara que era visivelmente mais fraco. Acho que ele era mesmo mais fraco… Mesmo naquela época. É um amigo que eu tinha nos tempos passados, acho.

O fato de eu ser mais forte fisicamente… toda noite… Principalmente os cabelos loiros dele. Tem mais de um ser humano que já viu cabeças carecas: a velhice, a doença, a dor (as três juntas ou separadas) explicam esse lance negativo dum jeito que dá pra engolir. Pelo menos, essa seria a resposta que um cientista me daria, se eu perguntasse sobre isso. A velhice, a doença, a dor. Mas eu não ignoro (eu também sou cientista) que um dia, porque ele segurou minha mão, bem quando eu levantava minha faca pra furar o peito duma mulher, eu agarrei ele pelos cabelos com um braço de ferro, e girei ele no ar com tanta velocidade que a cabeleira ficou na minha mão, e o corpo dele, jogado pela força centrífuga, foi bater no tronco dum carvalho… Não ignoro que um dia a cabeleira dele ficou na minha mão. Eu também sou cientista. Sim, sim, eu já disse como ele se chama. Não ignoro que um dia eu fiz um ato nojento, enquanto o corpo dele era jogado pela força centrífuga. Ele tinha catorze anos.

Quando, num ataque de loucura, eu corro pelos campos, segurando contra o peito uma coisa sangrenta que eu guardo há um tempão, que nem relíquia sagrada, as crianças e as véias que me correm atrás jogando pedra soltam esses gemidos tristes:

«Olha aí a cabeleira do Falmer.»

Tirem, tirem essa cabeça careca, lisa que nem casco de tartaruga… Uma coisa sangrenta. Mas sou eu mesmo que tô falando. A cara oval dele, os traços majestosos. Acho que ele era mesmo mais fraco. As véias e as crianças. Acho que… o que eu queria dizer?... acho que ele era mesmo mais fraco. Com um braço de ferro. Esse choque, esse choque matou ele? Os ossos dele quebraram contra a árvore… sem conserto? O choque matou ele, esse choque feito pela força dum atleta? Ele ficou vivo, mesmo com os ossos quebrados sem conserto… sem conserto? Esse choque matou ele? Tô com medo de saber o que meus olhos fechados não viram.

De verdade… Principalmente os cabelos loiros dele. De verdade, eu fugi pra longe com uma consciência agora braba. Ele tinha catorze anos. Com uma consciência agora braba. Toda noite. Quando um cara jovem, que quer fama, num quinto andar, debruçado na mesa de trabalho, na hora quieta da meia-noite, ouve um barulhinho que ele não sabe de onde vem, ele vira a cabeça, pesada pelo pensamento e pelos manuscritos empoeirados, pra todos os lados; mas nada, nenhum sinal pego explica o que ele ouve tão fraquinho, mesmo ouvindo. Ele saca, enfim, que o fumo da vela dele, subindo pro teto, faz, no ar do quarto, as vibrações quase invisíveis duma folha de papel pendurada num prego cravado na parede. Num quinto andar.

Igual um cara jovem que quer fama ouve um barulhinho que não sabe de onde vem, eu ouço uma voz melodiosa que fala no meu ouvido:

«Maldoror!»

Mas, antes de acabar com o engano dele, ele achava que tava ouvindo as asas dum mosquito… debruçado na mesa de trabalho. Mas eu não tô sonhando; que importa que eu esteja deitado na minha cama de cetim? Faço com frieza a sacada esperta que meus olhos tão abertos, mesmo sendo a hora dos dominós cor-de-rosa e dos bailes de máscara. Nunca… ô! Não, nunca!... uma voz mortal soltou uns tons angelicais assim, falando, com tanta elegância doída, as sílabas do meu nome! As asas dum mosquito… Como a voz dele é boa. Será que ele me perdoou? O corpo dele foi bater no tronco dum carvalho…

«Maldoror!»